Apresenta-se agora a segunda parte da entevista subordinada aos temas o ensino do Yoga na actualidade e o Professor de Yoga na Sociedade, resultante das conversas entre Pedro Kupfer e Ana Sereno.
O ensino do Yoga na actualidade
Hoje em dia, no Ocidente, o yoga aparece cada vez mais como técnica e menos como cultura. Achas que existem cada vez menos professores de yoga e cada vez mais professores de técnicas de yoga?
Neste momento de popularização extrema do yoga, não apenas no Ocidente, mas na Índia também, existem muitos professores de técnicas e poucos yogis.
Desde antigamente, o yoga nunca foi dirigido ao grande público. Se formos procurar nos shastras verificamos que o yoga nunca foi destinado às massas. Krishna diz a Arjuna na Baghavad Gita “são poucos os que têm interesse em moksha e, desses poucos, menos são os que conseguem realizar alguma coisa, e destes, são muito menos ainda aqueles que conseguem realizar a vida na sua plenitude máxima”. Neste sentido, se formos ainda mais para trás até às Upanishads, lê-se aquela afirmação da Katha Upanishad que fala sobre o fio da navalha “estreito é o caminho”. Não há muita gente disposta a andar no fio da navalha. Então yoga como fenómeno para o combate ao stress, para a manutenção da saúde e do bem–estar é uma coisa, agora yoga como caminho para moksha, como instrumento para colocar em prática o auto-conhecimento é para poucos e neste sentido, deparamo-nos hoje com esse paradoxo de ver muita gente a ensinar yoga, transmitindo técnicas baseadas na presunção de que yoga é um sistema para manter conforto, bem-estar e saúde e poucos, inclusivamente dentro da nação dos professores de yoga, o vêem como o que ele desde sempre foi – o caminho para a liberdade.
A diferença poderá estar vinculada com o estilo de vida ou com a cultura à qual o professor pertence?
O estilo de vida ou a cultura na qual nos inserimos são secundários em relação a isso. Voltando à Baghavad Gita, quando Arjuna pergunta a Krishna “como age esse yogi liberto?” ele quer saber como reconhecer o sábio, mas olhando por fora não existe nenhuma diferença. É como diz o ditado do budismo zen – “antes da iluminação cortar lenha, carregar água. Depois da iluminação cortar lenha, carregar água”. Não muda nada. Se o estilo de vida era ocidental deverá continuar a sê-lo e se era oriental, igualmente. A pessoa aprecia as coisas da própria cultura e sociedade e dá-se conta que precisa de devolver alguma coisa para esta mesma sociedade onde nasceu. Ela não renuncia à sociedade, desconsiderando tudo o que ela lhe deu de bom, isso seria uma atitude de ingratidão. Tudo o que nós somos e temos veio da sociedade. Na Índia existem dois nascimentos, o primeiro e o segundo no qual o hindu recebe o cordão Yajñopavitam, com três fios – ida, píngala e sushumna; tamas, rajase satva; os três princípios da realidade. Eles representam três dívidas que a pessoa tem de pagar: a dívida para com os ancestrais (pitra rihna), que se paga tendo e educando os filhos e assistindo e cuidando dos pais; a dívida para com os sábios (rishi rihna), que ensinam a arte de viver ou a vida de yoga e que se paga ensinando a próxima geração; a dívida para com a sociedade (dharma rihna), segundo a qual eu devo dedicar uma parte do meu tempo para o bem-estar das outras pessoas.
Qual o papel do karma yoga na vida de um professor?
Existe um consenso em alguns sectores da nação yogika que diz que a sua maneira de pagar a dívida com a sociedade deveria acontecer levando o yoga até às pessoas que à partida poderiam não ter acesso a ele. Neste sentido, o professor de yoga não precisa deixar de fazer a sua actividade, mas dentro daquilo que faz, dedica um momento, da sua semana ou do seu dia, aos demais, levando o yoga até aqueles que não conseguem ter acesso à sua escola, ensinando em hospitais, instituições ou prisões, por exemplo. Neste contexto, então, karma yoga é o que se conhece como o yoga da acção social.
O papel do karma yoga é, por um lado, o pagamento dessa dívida que o ser humano tem desde o nascimento e, por outro lado, tem a função de acumular punya, através da acção adequada, que é aquela que é meritória e que traz paz e tranquilidade.
Que estilos de vida estão em consonância com o dharma?
Todos. Qualquer sociedade humana sempre criou formas de interrelacionamento, nas quais aquele princípio áureo do dharma de não fazer aos outros aquilo que não gostaria que fizessem comigo, estivesse sempre presente. Se considerarmos estilos de vida como formas em que a sociedade se organiza, todos os estilos de vida, de todas as civilizações, culturas e continentes, estão baseados no dharma. Agora, dentro de uma sociedade, seja ela qual for, nós vemos que existem indivíduos com estilos de vida diferentes. Quando um estilo de vida atropela esse princípio áureo da equidade e do equilíbrio e a pessoa exige mais do que dá, então isso chama-se de conduta adhármica ou que vai contra o dharma. Logo, os estilos de vida que estão em consonância com o dharma são aqueles nos quais o indivíduo, a família, ou a nação respeitam o direito comum e reconhecem que o outro, seja homem ou mulher, branco ou negro, cristão ou pagão, muçulmano ou judeu, hindu ou budista, têm os mesmos direitos do que eu.
Como procedes quando as tuas preferências não coincidem com o dharma?
As preferências de cada um não são as preferências do Ser, porque o Ser não tem ego. Quando ganhamos aquilo a que se chama livre-arbítrio temos de aprender a usá-lo e, para isso, se não formos capazes de nos colocar no lugar do outro, os frutos das nossas acções vão-se voltar contra nós. Assim, liberdade é algo que precisa de ser bem compreendido para procedermos quando as preferências do ego não coincidem com o bem comum. Se eu perceber que alguma preferência que eu tenha esteja a prejudicar o bem comum, outros seres vivos, ou a mim mesmo, renuncio a essa preferência, ela deixa de ter valor porque existe um valor maior, que é o dharma.
Onde se situa a barreira entre o professor e o empresário?
Tradicionalmente, o yoga sempre foi ensinado dentro de famílias, em grupos pequenos ou “tête a tête”. Conforme vai aumentando a procura, o mercado responde gerando mais professores. O sistema capitalista tende a massificar meios de produção e de consumo, então para baixar o custo aumenta-se a produção. A diferença entre um grupo de yoga dentro de um esquema de produção massiva e um grupo pequeno de alunos que se ensina em casa, é equivalente à diferença entre a guitarra que foi feita na cadeia de produção e a outra, que foi feita por um artesão, sozinho em sua casa, e com tempo para trabalhá-la. Nesta sociedade contemporânea em que vivemos temos muito o paradoxo do cash&carry, não queremos esperar.
Mas a resposta a esta pergunta é que não existe barreira. Cada um escolhe de que forma se vai relacionar com o trabalho de yoga. Algumas pessoas vão olhar para o yoga como um produto e, analisando, o mercado, vão ver de que maneira aquilo poderá ser apresentado para que tenham um retorno. O foco para o professor-empresário deveria ser ainda o yoga e não apresentar o yoga como um meio para aplicar a mais-valia em professores e pensar em massas de alunos para ter retorno financeiro. Em todo o caso, este é um efeito subsequente, não deveria ser o foco. Há um fruto que retorna para o professor a partir do seu trabalho. Mas o foco para o ensinamento é moksha não é dinheiro. Ali está a diferença entre o professor-empresário em sintonia com a essência do yoga, e o outro que está focado apenas em ganhar dinheiro. O que busca moksha, paradoxalmente, obtém um resultado por vezes mais eficiente do que aquele que está centrado no dinheiro, porque este, muitas vezes, perde a credibilidade e perde o apoio das pessoas. Ninguém quer praticar com alguém que está centrado única e exclusivamente no dinheiro.
Eu gosto sempre de olhar para a forma com que se lidou com as questões na tradição do yoga, nos tempos passados, e sempre houve pagamento ao professor (dakshina – que quer dizer direito). O Yoga nunca foi dado de graça, o conhecimento nunca foi de graça. Então, findos os estudos o aluno tinha a obrigação de dar dinheiro ao professor. Na Taittirya Upanishad, que é uma das mais antigas, descreve-se a situação de um menino que está a deixar a casa do professor na qual dormiu, aprendeu e estudou, durante anos e tem de deixar dinheiro antes de partir. Conta-se que este menino entrega o que é descrito como um presente digno (naquela época, vacas, tecidos, grãos…) e havendo oferecido este dakshinao professor dá-lhe um discurso final sobre como ele se deve comportar dali por diante. Quando o aluno não tinha meios, pedia um mecenato, pedindo dinheiro ao Rei, que financiava os estudos dos alunos que não podiam pagar, pois aquele era o destino natural de uma parte dos impostos que ele recolhia da sociedade. Uma parte desses impostos ia para a manutenção de templos, estradas, obras públicas, e outra parte ia para financiar a educação daqueles que não tinham posses. Então, sempre houve uma retribuição do trabalho do professor, mesmo que não viesse directamente do aluno. Dinheiro é uma forma de energia, é a energia de Lakshmi que é a Deusa da saúde, da beleza e da prosperidade. Em sintonia com Lakshmi, se eu me dedico ao meu trabalho e se dedico os frutos do meu trabalho a Ísvara, naturalmente vem alguma coisa para mim nessa forma de energia, que se chama dinheiro. Se eu não tiver como foco fazer muito dinheiro, é provável que eu ganhe mais do que se estiver totalmente centrado nessa ideia. O professor trabalha relaxado, porque ele faz o trabalho pelo dharma e aquilo é mais uma consequência, juntamente com os outros frutos que se ganham e que são imensuráveis.
O professor de Yoga na sociedade
Porque é que frequentemente os professores de yoga são vistos como indivíduos que vivem uma vida de sacrifícios e privações?
Depende muito do olhar de quem faz o julgamento. Pessoalmente, não acho que seja sacrificante ou difícil escutar ou repetir o ensinamento do yoga e, basicamente, o professor de yoga é alguém que partilha a prática com as pessoas porque ele próprio precisa de fazer essa prática e de ouvir o ensinamento. Então, dá-se aqui um processo de retroalimentação. Se nós escolhemos ser professores porque nos demos conta de que o ensinamento é interessante, é importante e precisa de ser compartilhado, qual é o sacrifício em ficar perto disso? Talvez as pessoas olhem dessa forma para o professor de yoga, porque acham que a vida deste professor não tem nenhuma alegria. Se o professor de yoga não tem aquela vontade de adolescente de sair à sexta à noite e de andar sempre pelas festas, talvez quem olhe de fora pense “coitados, eles acordam cedo, não podem comer carne, não podem beber, não podem sair à noite…” . Mas é tudo uma questão de prioridades, nada é imposto ou forçado. Muitas vezes o que as pessoas não se apercebem é que aquele desapego que foi exercido sobre estas pequenas situações do quotidiano, ou sobre a alimentação, foi exercido porque aquilo deixou de ter valor, não há um sacrifício. O facto de algumas pessoa seguirem um ritmo e outras seguirem outro diferente, faz com que as pessoas que seguem o ritmo predominante vejam as as outras como se elas se sacrificassem. Mas a bem da verdade, o professor de yoga não se priva de nada, ele definiu quais são as suas prioridades e age de acordo com elas.
Como agir para desmistificar a ideia de que o professor de yoga é um ser alienado da sociedade com hábitos diferentes, pontos de vista diferentes, valores diferentes…?
Depende do que se entender por sociedade e por alienação. Na verdade, a presumida alienação do yogi não é uma alienação grave porque esta, literalmente, aplica-se a alguém que não pertence à sociedade. O professor de yoga constrói o seu próprio caminho nas seguintes bases: ele respeita as leis, mas não só respeita as leis humanas como também olha para o dharma que é a lei da harmonia universal e que tem regras que não estão escritas na lei humana. O dharma fala sobre o convívio entre os humanos, mas também da relação destes com a natureza, o cosmos e as gerações futuras. Nesse sentido, existe um compasso entre o ponto de vista do yogi e o ponto de vista prevalecente na sociedade, em que o primeiro não está apenas respeitando a lei porque é necessário, senão porque ele próprio opta por levar uma vida em harmonia com o dharma, pois isso redunda num bem maior para si e para a sociedade. Depois, como o professor de yoga também é uma espécie de embaixador de outra cultura, porque a cultura do dharma nasceu no Oriente, através do budismo e do hinduísmo, tem algumas coisas que são ligeiramente diferentes – alguns símbolos, roupas… mas isso acaba por funcionar como uma marca de identidade que todos os grupos sociais têm. Os surfistas têm a sua linguagem, o seu lugar de encontro, os seus lugares sagrados como Bali e Hawai. Numa palavra – os professores de yoga também formam uma sub-cultura.
Porque se criam quase comunidades de professores?
Quando não nascemos numa família de yogis, mas nos reconhecemos como tal, é natural que o estilo de vida daqueles que compartilham os mesmos ideais nos atraiam. Então as comunidades são, na verdade, famílias, kulam em sânscrito, que quer dizer clã ou família estendida. Eu tenho uma família biológica e depois tenho outra família que é a família do yoga. Esta família não é uma abstracção, entre ela criam-se laços que permanecem em harmonia, tolerância e aceitação mútua, sendo o resultado desta convivência positiva. Então, esta comunidade é uma família, com todos os problemas que uma família tem mas que não se separa por causa do dharma que mantém as pessoas unidas, dentro do mesmo ideal e objectivo – Moksha. Este objectivo vence todas as diferenças que existam entre os membros da família. Quando olho para um colega praticante vejo alguém que caminha na mesma direcção que eu.
Como lidar com os amigos, com as limitações que eles projectam em nós?
Amigo que é amigo vai compreender o que o amigo está a fazer e mesmo que não compartilhe o mesmo ideal ou a mesma visão a amizade não muda.
Como permanecer integrado numa comunidade cujas estruturas sociais estabelecidas, sobretudo para os mais jovens, marginalizam aqueles que não respeitam essas estruturas?
Isto Tem a ver com as sub-culturas que naturalmente se formam dentro das grandes estruturas culturais. Enquanto eu me enquadro nesses valores, repito esses gestos, pertenço a essa sub-cultura, mas se em algum momento eu deixo de ostentar esses símbolos sou colocado para fora pela minha própria atitude.
Neste sentido, as estruturas das tribos dos jovens por mais que pareçam coloridas, modernas e abertas são medievais, super fechadas “ senão pensas como eu és um alienígena”, “eu só falo com quem fala a minha língua”. Então quando temos amigos dentro de uma destas tribos, se eu mudo a minha forma de ser, mas a amizade existe, ela não se perde. A resposta à pergunta é que é impossível. O facto de eu viver a vida de yoga e seguir os seus valores não me vai colocar fora da sociedade mas é possível sim que, em algum momento, alguma pessoa observe ou se dê conta e mude determinados hábitos – como deixar as drogas ou o álcool. A pergunta que eu faço é: eu preciso de pertencer a um grupo no qual eu sou julgado pelos meus actos e do qual eu vou ser irradiado se os meus actos não se encaixarem com os actos que esse grupo aprova? Posso pertencer se para mim isso for importante, por uma questão de identidade cultural, mas se eu achar que não preciso disso não fico, e as amizades verdadeiras vão permanecer por mais que as pessoas naveguem em navios diferentes.