Nos dias 11 e 12 de Outubro, Swami Dayananda Saraswati veio encher de luz a Quinta das Águias e o coração de quem teve a oportunidade de o conhecer. Durante dois dias, Swamiji partilhou a sua visão clara sobre o ensinamento e ainda respondeu a algumas perguntas que lhe colocámos.
- Como e quando entendeu que podia conseguir Moskha através do estudo das Escrituras?
Primeiro entendemos que existe Moksha, para ser conquistada aqui, nesta vida. Depois entedemos que Moksha é uma compreensão. O que é o quê, a realidade? Esta realidade é o que é discutido por estes livros, que chamamos as escrituras, os livros espirituais, os livros de origem, os Vedas, as Upanishads. Chamamos-lhe Vedanta. E depois existem os livros de suporte, como a Gita e os demais.
Hoje em dia, as pessoas apresentam-no como um conhecimento intelectual, um conhecimento indirecto, que temos de fazer directo através da meditação, etc… Isso é o que ouvimos habitualmente.
Então, quando vamos mais fundo na questão percebemos que não existe conhecimento indirecto, porque estamos a falar de nós mesmos. Eu não sou conhecimento indirecto. Eu sou uma pessoa auto-evidente, por isso o conhecimento tem de ser directo, não pode ser indirecto. Se é assim, o professor também tem de ter presente esse conhecimento directo. Isso levou-me algum tempo a perceber, porque eu percebia a insuficência nas escrituras. A forma como é apresentada é insuficiente, eu percebi-a como sendo insuficiente. Então tive um professor e, ao ouvi-lo, percebi que o método de ensino é tão importante quanto o ensinamento em si. É um método de ensino, e o método é de tal forma que as palavras têm de ser usadas para fazer-te ver quem tu és. É, por isso, um tipo diferente de ensinamento e perceber isso levou algum tempo…
2. Quando é que decidiu renunciar a tudo para se tornar um sannyasi? Que idade tinha nessa altura?
Tinha 32. Comecei a levar isto muito a sério em 1952 e em 57 desisti do meu trabalho, tinha apenas 27 anos. Era jornalista e o meu jornalismo foi útil porque quando me juntei ao meu professor original, ele tinha uma organização, que editava uma revista e livros e eu comecei a editá-los. Portanto, foi útil e as minhas habilidades também foram úteis. No processo aprendi muito e cresci. Depois percebi as limitações no ensinamento e tive de procurar uma solução, de novo procurar, é assim que é…
3.Qual é a sua opinião sobre Hatha Yoga, a prática de asana, pranayama e meditação?
Hatha yoga é asana e pranayama. No Hatha Yoga explicam-se quais são os asanas. O yoga de Patanjali não explica qualquer asana. Só o Hatha Yoga explica os asanas. O livro Hatha Yoga Pradípika explica tudo isso. O que é swastikasana, o que é sidhasana, o que é sarvangasana, o que é shirshasana. Encontramos nesses textos todos eles explicados. Os asanas são muito bons, porque nos ajudam a descobrir o amor-próprio. No princípio começamos a cuidar do corpo, na aeróbica também se cuida do corpo, mas o objectivo é tentar queimar calorias. Na aeróbica, com o seu 1,2,3,4, durante uma hora só se queima peso do corpo, só se quer queimar esse peso extra.
Aqui, no Hatha Yoga, come-se apropriadamente, não se come demais. Mantém-se o corpo saudável, e para isso servem os asanas. Não é sequer exercício. É um método de se manter saudável, assim como o pranayama. É possível curar muitas doenças através do pranayama. Por isso, asana e pranayama são óptimos.
Como eles próprios ensinam, a meditação é importante. É muito importante porque te ajuda a ser tu mesmo e ajuda-te a descobrir a tua conexão com o todo, se for adequada. Meditação é uma palavra genérica. O que se faz na meditação é muito importante, por isso a meditação clássica é algo que te conecta com Íshvara, isso é muito, muito importante.
E assim, tudo isto é útil para entender o que o ensinamento é. Repara que existem dois níveis. Tenho de olhar para mim mesmo e perceber que sou o todo. Não é fácil, sabes? É uma reorientação. A orientação é que sou insignificante e a reorientação é que sou o único significante, nada é mais significante. A tudo o resto empresto vida, a tudo o resto empresto realidade, então é uma coisa muito especial e isso requer preparação. E a preparação é asana, pranayama, dharana, dhyana, todos estes são úteis.
4. Li um comentário seu numa entrevista que deu ao Andrew Cohen* em que dizia o seguinte: “não há nada neste mundo mais tolo do que a experiência. De facto, foi a experiência que nos destruiu”. Pode explicar esta frase?
É verdade. Foi o que eu disse. Isso foi a única coisa que ele transcreveu tal qual aconteceu, depois disso já não.
Percebeste o que eu disse? Ele não. Uma experiência nunca nos vai relevar o que é, toda a experiência que temos é Brahman, é o ilimitado Brahman. Uma vez que dizemos que Brahman é eterno, ele não se pode esconder do tempo e Brahman é tudo, pelo que não nos pode manter afastados dele, nem tão pouco podemos afastarmo-nos dele. Então tudo o que é, é Brahman em qualquer experiência, seja triste ou abençoada, tudo é Brahman. Se tudo é Brahman temos de o saber.
A experiência é Brahman, a consciência é Brahman, toda a experiência é consciência e ela é Brahman, e porque é que não o sabemos? Se a experiência pudesse dizer-mo, eu deveria ser iluminado. Ele não entendeu isto! Eu também lhe disse isto, mas ele não percebeu. Ele tem um paradigma, e ele quer experimentar. A experiência de Brahman não é alguma coisa do coração. Todos eles pensam que é alguma coisa no coração que temos de experimentar e da qual depois temos de sair. No calor da meditação tu vais experimentar Brahman, (risos), como se fosse queijo derretido. Imagina que fazes uma tosta de queijo e no meio das duas fatias de pão pões uma camada de queijo. Então, quando pões a tostar, o queijo começa a derreter e a transbordar, consegues ver o queijo a sair por todos os lados. Isto é exactamente o que acontece no calor da meditação, atman derrete-se, transborda e é o êxtase! (risos)… Paradigma. Ele não entendeu nada disto, e naquilo que escreveu ridicularizou tudo. Ele não teve o cuidado de confirmar se tinha ou não entendido. Ele tinha de ter confirmado. É um tema que pede uma escrita responsável e ele escreveu de forma irresponsável.
5. Como podemos entender a não-dualidade (advaita) e, ao mesmo tempo, sermos capazes de criar um distanciamento (uma não-identificação) entre nós mesmos e as nossas emoções?
Não precisamos criar um distanciamento. Uma coisa é satyam e a outra é mithya. Quando a não-dualidade é entendida, aquilo que é auto-evidente é não-dual. Tudo o resto é mithya, logo é não-dual. Se existem cem jarros mas compreendemos que só há barro, isto é não-dual. Há apenas um barro em relação aos jarros. Cem jarros e um barro. Contamos barro, há apenas um barro. Então um barro e cem jarros é o quê? Não-dual, não há soma. Se um jarro entendeu que é barro, então é livre. O jarro é mithyam, é aparente.
Então, se analisarmos, mesmo no nível de Íshvara, se Íshvara é tudo na forma de ordem, então as emoções também estão na forma de ordem e eu posso ter emoções, eu dou as boas-vindas às emoções. Vou até ao nível de Íshvara e vejo-as como ordem, logo são aceitáveis. A distância parece muito simples. Por isso eu disse que o devoto é aquele que descobre a relação entre ele, o indivíduo, e o todo, aí ele torna-se um devoto. E este devoto desempenha o papel de filha, de irmão, de irmã,… O papel de devoto está lá em todos os papéis, e existe uma distância entre os papéis e o devoto. O papel é o devoto, o devoto não é o papel. Esta é a distância. B é A, A não é B.
6. Como devemos lidar com as nossas emoções?
Sabes, como disse, lidamos com as nossas emoções como sendo válidas. Lidamos com todas as emoções objectivamente. São todas emoções válidas. Qualquer emoção é válida. Está ali, porque tem de estar ali. Existe uma razão para isso. Assim, não te julgas baseado nas tuas emoções, não fazes qualquer julgamento. Estas emoções são reais, elas têm um passado, uma relação causa-efeito e, por isso, aceitas as emoções e fazes aparecer Íshvara. Assim, recebes melhor a Ordem que é Íshvara. A única coisa que tens de dizer é que é a ordem de Íshvara. As emoções estão aí por causa da ordem que é Íshvara. Acolhes as emoções mas nunca vitimizas quem quer que seja. Na raiva, em qualquer emoção, ninguém é tua vítima, nem tu és a vítima. Assimilas isso, se não o fazes tornas-te vítima. Assimilas e então existe um processo. O primeiro é chamado dama e o segundo shama. Dama é não vitimizar e shama é o processo que acontece assimilando, escrevendo, falando com alguém. Escrever é melhor, porque se falas tens de ser cuidadoso com as palavras. Escrever é melhor porque podes dizer o que quiseres, em verdadeiro português. Escreves, escreves, escreves, e depois destróis. Algumas pessoas guardam, guardam como se fosse uma escritura. A destruição faz parte do processo, tens de destruir. Isto é um processo.
7.O que é conhecimento revelado – a origem dos Vedas? Revelado como, por quem, quando?
Conhecimento revelado é epistemológico. É uma questão de pramana. Os meios de conhecimento que temos não objectificam, nem têm acesso a determinadas coisas, como por exemplo, punya e adrishta. Punya é o resultado de um bom karma, uma oração, um grande ritual ou caridade. Tudo isto trás punya. Bom, nós não vemos punya, vemos apenas o resultado de punya. Este resultado é estar no lugar certo à hora certa. Esse é o resultado de punya, e estar no sítio certo à hora errada é o resultado de papa. Imagina que estamos na estrada, que é o sítio certo para estar. O teu carro segue na estrada, no sítio certo, mas à hora errada, porque queres ocupar um lugar e outra pessoa quer ocupar o mesmo lugar, ao mesmo tempo. Então tens um acidente, o que está fora do teu controlo. Isso é papa, o resultado de papa. Papa não é pecado, papa é apenas papa. Não existe palavra em inglês [nem tão pouco em português]. Para punya também não existe palavra equivalente. Punya e papa têm de ser conhecidos por outro meio de conhecimento, e se ele existe, é o que chamamos conhecimento revelado. Isso está nos Vedas.
De forma semelhante, Atman é Brahman, a causa do mundo, Íshvara, é impossível conhecer. Porquê? Porque não está ao alcance da percepção ou inferência, tem que nos ser dito. Uma vez que nos é dito, e que está correcto, podemos remover completamente todas as objecções. O resultado é conhecimento, mas tem de ser ensinado. Aquele que conhece não pode conhecer a verdade de si mesmo, porque o conhecedor tem apenas os sentidos e a informação que chega através deles é baseada na inferência. Assim, o conhecedor pode objectivar e conhecer, por isso o que é objectivado, o que é o conhecedor e o conteúdo de ambos, é um Brahman. E como sabe ele isso? Tem de lhe ser dito.
Isto vem sendo transmitido. De quem veio primeiro, alguém o deve ter dito. Existe apenas Íshvara. Íshvara manifestou tudo e o seu conhecimento veio com isso. Em todas as culturas existem afirmações como tu és tudo, tu és o todo, tu és Íshvara. Isso é Vedanta, não precisa de ser em sânscrito. Em todas as culturas isso esteve presente. Esse é conhecimento comummente disponível, mas na índia temos uma tradição de ensino, não apenas uma afirmação, um ensinamento, mas um método de ensino. Que és o todo está em todas as escrituras e mesmo fora das escrituras estas afirmações também existem. Mesmo pessoas iliteradas produziram essas afirmações. Místicos tiveram essas experiências, pessoas literadas revelaram-nas, mas ninguém sabe o que é. Têm insights, porque o todo é percebido mas não existe método de ensino.
Este é um conhecimento revelado, revelado aos Rshis, de quem não sabemos a idade, nem o momento em que foi revelado. Revelado aos Rshis que por sua vez revelaram a outros e assim tem vindo a ser passado. Funciona, e isso é que é importante.
8. Há quem diga que “ que para nos conhecermos não é necessária qualquer aprendizagem ou conhecimento das escrituras, uma vez que nenhum homem precisa de um espelho para se ver”. Como comenta esta afirmação?
De facto, nenhum homem consegue ver a sua pópria face sem um espelho, correcto? Suponhamos que os olhos se querem ver a eles próprios, não conseguem, os olhos não se conseguem ver, precisam de um espelho. No espelho eu vejo os meus olhos. Eu vejo os meus próprios olhos através do espelho. Quando olho para um espelho o meu compromisso não é olhar para o espelho, mas olhar para mim mesmo. Na verdade, o espelho são os meus olhos. Eu vejo-me, vejo a minha cara no espelho, mas não existe qualquer dúvidade de que eu sou. Perceber isso não requer qualquer espelho ou meio de conhecimento. Eu sou. Toda a gente sabe isto. Eu sou auto-evidente. Existes ou não? Tens de responder “sim, eu sou, eu existo”. Não precisas de consultar, não precisas de ver, não precisas de ouvir, porque estás ali tu vês, ouves e por isso não precisas de nada.
Mas quem és tu? Essa é a questão. Tu és auto-evidente, mas quem és tu? Aí começam todos os problemas. Eu sou assim,sou assado, sou isto, sou aquilo, esta é a pessoa… Quem és tu? Eu sou tanto quanto este complexo corpo-mente-intelecto. E então alguém diz, “não, eu sou diferente de tudo isto”. Como é que sabes? Porque olho para todos eles. Mas então quem és tu? Ainda, quem és tu? E o que é este complexo corpo-mente-intelecto?Isto é dualidade, duas coisas diferentes. Então jagat, o mundo está aí, e a causa do mundo, Íshvaraestá aí, como vais saber isso? Para isso serve o espelho. Até para veres a tua própria cara precisas de um espelho. Para veres a realidade de ti mesmo também precisas de um espelho de palavras. É um espelho. Estás a olhar para ti próprio. É um espelho de palavras. Sabes, há frases como “para olhares para ti próprio não precisas de um espelho”… Tu precisas de um espelho, de ambos. Para olhar para a tua cara precisas de um espelho. Nem sequer consegues olhar para as tuas orelhas, nariz, bochechas, testa, cabelo… não consegues olhar para nada. Os olhos não estão posicionados para isso. Para isso há um espelho que é fornecido, para veres o espelho e veres além. Então precisas de um espelho, não só para te ver, mas para ver quem és. Para saber que sou não preciso de um espelho, mas para saber o que sou preciso de muitos espelhos. Yeah! (risos)
9. Se existe uma ordem universal, e se esta ordem é perfeita, apesar do modo como agimos no mundo, porque devemos agir de acordo com o dharma?
Porque dharma é a ordem, porque dharma é Íshvara e se eu vou contra a ordem existe uma pressão, raga-dvesha, a pressão está lá e eu cedo a essa pressão. Mas também me é dada pela ordem a capacidade de contrariar essa pressão, porque a pressão é falsa. O dharma é real, a pressão só lá está devido à minha falta de compreensão das prioridades. Se as prioridades estão claras, e para isso eu tenho budhi ( o meu intelecto) – para perceber quais são as prioridades – então posso ter/ser um sistema de suporte. Posso ir contra a pressão, conformar-me com o dharma e evitar o conflito. Quando vais contra o dharma estás sujeito ao conflito e à culpa, não podes evitá-lo, porque é a ordem. E ninguém quer sentir culpa, logo, para se livrar da culpa, para ter a satisfação de ser eu próprio, para estar alinhado com Íshvara, tenho de me conformar ao dharma. No início com algum sistema de suporte escondo-me da pressão. Depois, com mais compreensão torna-se mais fácil. Com maior compreensão as minhas prioridades mudam, é muito, muito fácil. Suponhamos que até existe alguma pressão devido a uma velha orientação, posso livrar-me disso “fingindo e fazendo”. Ao fingir como se “dharmico” eu fosse, ajo, e então “dharmico” me torno. É como nadar. Nadando, eu aprendo a nadar. Não há outra forma. Tens de nadar para a aprender a nadar, e tens de agir de acordo com o dharma para te tornares “dharmico”.