O ilustre desconhecido que fez a diferença e a influência de Ramana Maharshi na sampradāya do Swami Dayananda
Este texto é ao mesmo tempo uma reflexão e uma forma de honrar alguém que me tocou profundamente, cuja bênção procurei, mas que nunca conheci porque morreu 11 anos antes de eu nascer. Ele é o ilustre desconhecido que fez a diferença para todos nós, discípulos de Swami Dayananda.
É conhecido que o Swami Dayananda teve três mestres, Swami Chinmayananda, Swami Pranavananda e Swami Tarananda. Aos longo dos anos de estudo presencial com o Swamiji e de todas as horas que o ouvi a ensinar através de gravações, sempre foi para mim de imenso interesse ouvi-lo falar sobre os seus mestres. E de todas as histórias, as que mais me tocavam eram invariavelmente as que contava sobre o Swami Pranavananda. Havia qualquer coisa de diferente nele. Ao contrário de Swami Chinmayananda sobre quem se pode ler e saber muito ou mesmo do Swami Tarananda de quem também ouvi histórias da minha mestra Gloria Arieira, sobre o Swami Pranavananda sempre era um vazio. Tinha morrido há muito e quase sem legado conhecido.
Uma vez, na livraria do Ashram em Rishikesh, vi pela primeira vez uma fotografia dele. Impactou-me profundamente. Realmente senti uma conexão profunda com este homem. Desde então, a fotografia dele está sempre aonde trabalho, numa moldura com Vyasa ao centro, Ramana Maharshi à esquerda e Swami Pranavananda à direita. Mal eu sabia quanto eles tinham em comum! É o lugar dos mestres dos meus mestres. Em cima tenho um quadro de Sri Shankara pintado por um conhecido pintor italiano, que me foi oferecido pela também minha mestra Ganga Mira.
Porque é que o Swami Pranavananda é tão importante?
O Swamiji contava que em determinada altura da vida dele sentia que faltava algo, havia para ele um defeito no vedānta. O vedānta era uma teoria que tinha de ser posta em prática através de uma experiência. Esse entendimento falhou em trazer-lhe a própria verdade de advaita vedānta. Numa circunstância, o Swamiji disse que tinha vontade de deitar todos os livros fora, mas que a própria educação tradicional dele não o permitiu.
No livro Swami Dayananda Saraswati, Teacher of Teachers, o Swamiji diz:
“O ensinamento prevalente era que o vedānta era uma teoria e que nós tínhamos de praticar certas coisas para ganhar a experiência do ātmā. Mas isto levantava várias dúvidas em mim. Se é uma teoria, pode ser contestada. Se é uma experiência pode ser interpretada de forma diferente. Também para experimentar o ātmā, tem de haver uma experiência sujeito-objecto. Se o ātmā é o objecto experimentado, então quem é o experimentador? É ele anātma? Como ia eu resolver tudo isto?”
“Este foi um ponto crucial na minha vida. Devia eu continuar a estudar vedānta ou não? Eu passei noites sem dormir.”
Foi aqui que apareceu o Swami Pranavananda. Ainda no mesmo livro, o Swamiji diz:
“Eu ainda estava à procura de uma resposta. Nessa altura eu ouvi, em algum lado, uma palestra em Telegu pelo Swami Pranavanandaji. Imediatamente, impressionou-me que este homem sabia alguma coisa. Eu pensei, eu tenho de ir e ficar com ele e tentar entender o que ele tem a dizer, mesmo que eu não fosse fluente em Telugu.”
Assim, o Swamiji foi aprender com o Swami Pranavavanda. O Swamiji contava que quando foi a primeira vez estudar com o Swami Pranavananda para Gudivada, este, procurando honrá-lo, convidou-o para dar uma palestra aos seus alunos. O Swamiji pensou então ir pelo seguro (no seu entendimento ao tempo) e decidiu dar uma palestra sobre os quatro tipos de yoga, karma, bhakti, rāja e jñāna yoga para diferentes tipos de personalidade. O rosto do Swami Pranavananda foi-se fechando cada vez mais, até que ele mandou o Swamiji parar e sentar-se para ouvir! Imagine-se o que terá sido para o Swamiji! Mas a honestidade intelectual do Swamiji, a vontade de aprender e o desejo por mokṣa eram maiores do que qualquer sentido de afronta.
Foi nesta altura que o Swamiji ouviu que advaita vedānta não era uma teoria, mas um pramāṇam, um meio de conhecimento, para si mesmo, como os olhos são para as cores e formas. Nas palavras do Swamiji, ele perguntou a Swami Pranavananda: “Vedānta é como os meus olhos para as cores? Sim é. Não pode ser negado por outro meio de conhecimento? Não.” Ele disse-nos, então, “para mim não houve mais volta atrás.” (“for me there was no more looking back”). Nunca mais esqueci esta frase do Swamiji, a força que a sua voz carregava e o impacto que deixou em mim.
O Swamiji contava que o Swami Pranavananda só ensinava Pancadaśī. Ele começava um capítulo, mas nunca acabava. A partir de um momento no texto, ele descolava do próprio texto (“He would take off”) e ensinava livre. O Swami Pranavananda manuseava o vedānta como um pramāṇam e era isso que faltava ao Swamiji. Nas suas palavras:
“Depois eu tive de voltar a olhar para todo o vedānta de novo. Agora, eu tinha a chave.
…
Ninguém me ensinou Upanishad Bhāṣyam ou Gītā Bhāṣyam. Pela graça de Īśvara, eu fui capaz de entender quando as estudei. Mais tarde, eu ensinei aos meus alunos, mas ninguém me ensinou. Depois, eu estudei o Brahmasūtra bhāṣyam com o Swami Taranandagiriji e ajudou-me a ter maior clareza. A visão tornou-se clara.”
No Blog da Swamini Tattvavidyananda, a minha professora de canto, encontrei publicado o tributo que o Swami Dayananda fez ao seu mestre aquando da sua morte em Maio de 1969. Esse tributo foi publicado na edição de Junho de 1969 da revista Tyagi, que o Swamiji editava. Traduzo esse tributo:
“Sua Santidade Swami Pranavananda de Gudivada atingiu Mahāsamadhi a 15 de Maio de 1969. Por insistência de Sri Swamiji, eu vivi com Sri Swami Pranavananda no seu ashram por alguns meses em 1961-62, e dali em diante eu estava em contacto com ele.
Em ensinar ātmā vidyā, existe uma tradição no nosso país. Se ela não é conhecida por um professor, ele nunca conseguirá transmitir o conhecimento da śruti a um buscador. Assim como os olhos são um pramāṇa para todas as percepções de formas, a śruti através de um professor vivo, torna-se um pramāṇa para o auto-conhecimento. E, portanto, o método de ensino é importante. Se não existe método tradicional ao ensinar esta vidyā, não existe necessidade de um guru; alguém pode ler os livros com algumas qualificações preliminares gerais para ler e entender.
Muito poucos conhecem a importância deste método, menos ainda o método. Por causa desta omissão, a vidyā inteira prova-se sem sentido na medida em que se torna objetiva. O professor através do método tradicional de ensino da śruti põe o aluno na experiência actual, à medida que o professor ensina, de uma forma peculiar que é tradicional, a natureza de si mesmo, o eu.
O Swami Pranavananda era um destes mestres professores. O seu manuseio habilidoso das escrituras molda paradoxos usados para, assim como os koans do mestre Zen, desenredar o raciocínio do estudante dos seus conceitos relativos e assim trazer o reconhecimento súbito ou satori.
Eu descobri nas suas aulas este aspecto principal do nosso ensino tradicional. Quando o encontrei, há uns meses atrás, ele estava deitado na cama, mas ele era claro no seu pensamento e alegre como de costume. Ele sabia que não havia cura para a doença da qual sofria. Quando me despedia dele, depois de uma estadia de dois dias no ashram, pedi-lhe que me desse uma mensagem para os buscadores. Ele ditou imediatamente em Telegu para um dos residentes no ashram, algumas linhas, de facto, a essência das nossas escrituras. Eu traduzo o mesmo, aqui abaixo:
´A doença que acometeu este corpo é demasiado séria para qualquer cura, ela desparecerá apenas a expensas do corpo. Portanto, os remédios ou médicos não devem ser culpados se falharem em resultar. Devido a esta incapacidade, a minha mente não é de modo nenhum afligida. Eu considero que tudo é pelo melhor.
Liberdade é a natureza de si mesmo, o “eu”, e o si mesmo é idêntico a Brahman, que é não dual. Portanto, o si mesmo, como Brahman, é livre de todo o modo de dualidade, como sajātīya, vijātīya e svagata.
No último verso da Bhagavadgītā é dito que brahmī sthiti é o destino desta vida e por isso a morte não pode viajar com o prāṇa.
Karma e upāsana são seguidos pelas pessoas, apenas pela sua identificação com o corpo, dehātmā buddhi. O corpo que não é o si mesmo, o “eu”, é tomado pelo si mesmo e é por causa desta razão que existe a busca de karma e upāsana. Portanto, esta busca não pode ser tomada como mokṣa.
Supõe que uma pessoa, de nome Rama, está a dormir. Se ele é chamado por alguém “Rama”, ele acorda. De forma semelhante, com as palavras profundas da śruti, se o mestre revela ao aluno a identidade de si mesmo com o absoluto, o aluno acorda para descobrir a sua identidade com Brahman.
Assim, mokṣa é apenas através do ensinamento do mestre e da śruti. É isso que é indicado por Shankara no seu famoso verso: brahma satyam, jagan mithyā jivo brahmaiva nāparaḥ. Brahman, o absoluto é real, o mundo é aparente; o jīva, o conhecedor, não é diferente de Brahman, o absoluto. Isto e isto apenas é a mensagem de Adi Shankara. Todos os outros seguem este ensinamento. Por isso, eles não têm conteúdo original.
Tu és aquele é a afirmação profunda da verdade revelada a Svetaketu como encontramos no Sāma Veda. A mahāvākya tat tvam asi conhecida como upadeśa vākya é a principal entre todas as outras na śruti. Todas as outras são apenas centradas nesta.
Karma e upāsana são executados retendo o ahamkāra. Este usufruir dos resultados da acção só existe quando o “eu” é tomado pelo ego. E a libertação assim como também o aprisionamento, embora pertençam ao ego, aparecem como se pertencessem ao “eu”.
Esta falta de discernimento que é algo natural ao intelecto que é extroverso, não vai embora facilmente a não ser que alguém ouça, por um bom período de tempo de um mestre, as escrituras, reflicta e contemple naquilo que ouviu.
Por isso, viver com o mestre, gurukulavāsa, é imperativo. É apenas por isto que o sannyāsāśrama está em voga. Está é a essência de todos os śāstras. Mantem isto sempre no teu coração. A noção que o mundo é real tem de ser dissipada. Esta é a prática, contemplação. `
O Swami ditou tudo isto com a sua usual clareza de expressão. Era evidente para ele que não existe morte para um sādhu, nem eu sinto que ele tenha morrido alguma vez.”
A primeira vez que li este texto emocionei-me como tantas outras vezes depois que voltei a ler. Afinal, devemos tanto a este mestre que ficou praticamente desconhecido. A imediatez que muitos atribuem apenas aos satsaṅgas de advaita vedānta, não é deles. Ela não é pertença de uma forma de ensinar sem recurso ao śāstra. Ela é da própria tradição, ela é presente no Bhāṣyam de Sri Shankara! Infelizmente, como o Swamiji descobriu estava perdida, na dita tradição. A tradição de ensino não se encontra numa organização estruturada de forma tradicional ou não. Ela encontra-se no manuseio das palavras.
Qual seria a história deste mestre Swami Pranavananda? E com quem teria ele aprendido?
O próprio Swamiji perguntou-lhe:
“Eu perguntei ao Swami Pranavanandaji quem o tinha ensinado. Ele disse:´Eu não estudei formalmente. Mas houve um Avadhuta mahatma. No decorrer do satsaṅga com ele, ele ensinou-me o que eu sei.`
Quem seria o Avadhuta mahatma?
Por anos, ocasionalmente, tirava um tempo para tentar saber mais sobre este
mestre, até que um dia em Janeiro de 2023 descobri o nosso Swami Pranavananda nos arquivos do Ashram de Ramana Maharshi. Segundo os arquivos do Ashram:
“Swami Pranavananda foi um dos primeiros devotos a ir ter com Bhagavan [Ramana Maharshi]. Ele visitou Bhagavan em 1910, na caverna de Virupaksha. A sua integridade e forte aspiração espiritual ganharam-lhe um lugar invejável entre os devotos de Bhagavan. Ele foi um dos primeiros companheiros íntimos de Bhagavan. O seu amor por Bhagavan era tão grande que ele entregou-se incondicionalmente aos pés de Bhagavan, …
Pranavananda considerava Bhagavan a própria personificação dos Vedas e das Upaniṣads e tinha um grande amor e reverência por ele. Bhagavan também tinha um especial cuidado e consideração por Pranavananda.”
Encontramos naqueles arquivos um relato da vida de Swami Pranavananda e da sua associação com Ramana Maharshi. Ficamos a saber como o Swami Pranavananda esteve envolvido na publicação de livros de Ramana Maharshi e como ele próprio traduziu para Telegu livros de Ramana como Who am I?, Vicharasangraham, Vivekacūḍāmaṇi e Devikalottaram. Ficamos também a saber que ele escreveu livros originais como Rama Maharshi Charitramu, Advaitabhoda Dipika, Tatvamali Dhyanamu, Sri Guru-Anugraha-avataramu, Dipamu Choodandi e Sri Ramana Stutipaatalu.
Descobri ali que o Swami Pranavananda tinha em grande estima o Rāma tāraka mantra, e que o ensinava aos seus alunos para que os seus corações e mente adquirissem clareza e brilho. Ele tinha também o hábito de ensinar o Rāmāyaṇa aos seus alunos para que eles aprendessem a apreciar e admirar o épico.
Diz-se ali, que no fim da vida, o Swami Pranavavanda pediu que alguém próximo cantasse com ele Rudram. No final da recitação, fechou os olhos, disse Hari Om, e assim terminou a sua vida.
Do que consta dos arquivos a influência de Ramana Maharshi sobre Swami Pranavananda foi enorme! Parece claro que ele era o Avadhuta mahatma que o Swami Pranavananda mencionou ao Swamiji. Afinal haveriam dois Swami Pranavananda com um ashram em Gudivada que morreram no mesmo mês de Maio do ano de 1969!?
Não sabemos se o Swamiji sabia que o Avadhuta Mahatama era Ramana Maharshi. Talvez soubesse e por isso tenha querido honrar o mestre do seu mestre ensinando os textos de Ramana. Afinal foi o Swamiji que ajudou a popularizar o Upadeśa Sāram e Saddarśanam de Ramana. Por outro lado, talvez não soubesse, porque nunca o ouvimos falar disso. Não tenho como dizer se sabia ou não.
A relação do Swami Pranavananda com Ramana Maharshi era, quando a descobri, desconhecida da Professora Gloria Arieira e do Swami Paramarthananda com quem falei sobre o assunto.
Por outro lado, não sabemos também quanto o próprio Swami Pranavananda ou outros terão influenciado Ramana. Numa das biografias oficiais do ashram de Ramana, Sri Ramana Leela, encontramos a seguinte passagem:
“Aqueles interessados na espiritualidade e yoga acercavam-se do Swami [Ramana Maharshi] com as suas dúvidas. Era natural para o Swami misericordioso responder-lhes. No entanto, para ensiná-los de uma forma que fosse inteligível para eles, foi necessário para o Swami tomar contacto com a terminologia aceite, conforme estabelecida pelos textos tradicionais. Era também necessário explicar os assuntos de uma forma que habilitasse os ouvintes a entender e praticar. Para este propósito tornou-se necessário olhar para os śāstras, não para ele mesmo, mas para benefício de outros. Apesar de estabelecido “naquele de onde a mente e as palavras voltam”, de forma a explicar sobre isso, o uso de palavras era inevitável. Também por este motivo o Swami teve de consultar as escrituras.”
É interessante ver que Ramana fez uso do próprio śāstra para poder comunicar. Essa comunicação adequada de que tanto falava o Swamiji é o pramāṇatvam do śāstra. Essa imediatez que o Swamiji reconheceu no Swami Pranavananda é a mesma que eu vejo nos meus mestres. É a mesma que vejo no Swamiji, na Glória e na Ganga Mira. A esse pramāṇatvam das suas palavras, que são o eterno diálogo de ensinamento de mestre e discípulo das upaniṣāds, eu rendi-me e rendo-me, de novo e de novo.
Olhando o próprio percurso do Swamiji cai por terra a divisão do ortodoxo/tradicional versus não ortodoxo/tradicional. A questão sempre foi e será em lidar com advaita vedānta não como uma teoria, não como uma experiência, mas como removendo a confusão sempre agora, nunca numa promessa futura, revelando o que sempre somos, agora. Como dizia o Swamiji, a beleza de vedānta é que se consegue negar a si mesmo. Quando o buscador é negado, quem permanece para ganhar mokṣa!?
No final, o que sabemos, conforme o próprio Swamiji disse, é que depois do período de dúvidas que teve, da descoberta do pramāṇatvam no śāstra, o Swamiji voltou a olhar para o śāstra, estudou upaniṣad bhāṣyam e foi estudar sūtrabhāṣyam como o Swami Tarananda. O vínculo a Śrī Shankara era o âmago do ensinamento do Swamiji. O que o Swamiji valorizava era a visão de Śrī Shankara sobre o sāstra e não um comentário ou ṭīkā, só porque estava em sânscrito. Essa visão estava presente em palestras e aulas, tanto como quando ensinava o próprio bhāṣyam. Dessa maneira, na forma de ensinar, o Swamiji ter-se-á aproximado mais do seu último mestre, o Swami Tarananda. Ele manteve sempre isso até ao fim da sua vida, o manuseio do śāstra como pramāṇam.
Lembro muitas vezes desta composição de Sadāśiva Brahmendra, chamada sarvam brahmamayam:
सर्वं ब्रह्ममयं रे रे
sarvam brahmamayam re re
Tudo é nada mais que Brahman,
किं वचनीयं किमवचानीयं किं रचनीयं किमरचनीयम्
kim vacanīyam kim avacanīyam kim racanīyam kim aracanīyam
O que deve ser falado, o que não deve ser falado, o que deve ser composto, o que não deve ser composto,
किं पठनीयं किमपठनीयं किं भजनीयं किमभजनीयम्
kim paṭhanīyam kim apaṭhanīyam kim bhajanīyam kim abhajanīyam
O que deve ser estudado, o que não deve ser estudado, o que deve ser reverenciado, o que não deve ser reverenciado
Em todo o lado, sempre, a contemplação da natureza de si mesmo deve ser levada a cabo. Essa é a causa e aí reside a liberdade.
Sadāśiva Brahmendra mostra-nos nesta composição o quão desnecessário e insignificante é entrar em discussões, esgrimir em argumentos, e como esse tempo deve ser dedicado à apreciação de que tudo é um ātmā īśvara brahma.
Sou grato a todos os mestres que passaram adiante a tradição de ensino, o uso da palavra, do silêncio e do olhar. Sou grato ao Swami Pranavananda que é uma inspiração sempre presente em mim. Sou grato ao Swamiji por não ter desistido da sua busca pela verdade. Sou grato aos meus mestres Swami Dayananda, Gloria Arieira e Ganga Mira pelo que me mostraram e por me permitirem o maior feito que poderia alcançar: o de ser seu discípulo.
“Vairagya serve para te ajudar a tornares-te uma pessoa maior”
Em Março de 2010, durante o primeiro curso em Rishikesh, dedicado ao texto Pancadasi, tivemos uma vez mais a honra e feliz oportunidade de entrevistar Swami Dayananda. Como já se vem tornando hábito, fomos recebidos na sua casa, pelo seu bom humor e compaixão e expusemos as nossas questões às quais Swamiji respondeu com toda a sua clarividência. É com muito gosto, então, que partilhamos mais uma entrevista, desta vez sobre os valores universais, desejando que possa ser útil e esclarecedora para todos.
Existem alguns valores universais. Porque devemos segui-los? Porque alguém nos diz para fazê-lo, ou existe uma razão objectiva para tal?
Os valores não são universais porque alguém nos tenha dito. Se alguém nos tivesse dito não seriam universais. Sem que ninguém nos diga nada, temos valores que são universais. Isto vem de um simples facto inerente a qualquer organismo vivo, que é: querer viver e viver sem sofrer. Eu quero viver, não quero sofrer. Isto é um valor instintivo de todo o organismo vivo para que possa sobreviver. É um instinto de sobrevivência. Com os animais esse instinto pára por aí, está programado. Imaginem que uma vaca dá um coice a alguém e essa pessoa fica magoada, a vaca não sente qualquer arrependimento, ou culpa. Nós humanos também não queremos ser magoados, porque somos seres vivos, então temos o mesmo valor de que ninguém deveria magoar-nos. Mas enquanto seres humanos temos a capacidade para observar e saber que os outros também não querem ser magoados, é do senso comum. A vaca parece não saber isso, mas nós sabemos, observamos e sabemos. Então, se eu não quero ser magoado e os outros também não – um valor nasce. Assim sendo é universal, é um valor não ensinado. Todos os outros valores nascem desse valor porque se fores contra ele vais magoar as pessoas. Roubar, enganar, explorar – tudo isto magoa as pessoas. Logo existem valores derivados e existem valores primários, sendo que ahimsa – não magoar o outro – é um valor primário. Como tal dizemos que ahimsa é o valor primordial – paramodharma. A partir daqui já temos um conjunto de valores. Se alguém é compassivo, compreensivo, generoso, cuidadoso, valorizamos isso. Os outros também valorizarão isso em nós. Ainda assim, porque é que as pessoas vão contra os valores, se sabem que aqueles são os valores que formam uma estrutura comum? Os seres humanos têm a capacidade de escolha e assim sendo precisam de uma estrutura de valores comum – a tua escolha não me magoa, a minha escolha não te magoa. Então, se existe essa estrutura comum de valores, porque vou contra ela? Por uma razão: a pressão dos meus desejos, da minha ambição. O desejo gera pressão, essa pressão faz a pessoa comprometer os valores, o dharma, e por isso dizemos: não cedas à pressão – tayor vacham na agachet; não te deixes levar por essa pressão, a pressão do desejos, de diferentes tipos de desejos – raga-dvesha. E porque não, se tanto se fala em “Sobrevivência do mais forte”[1]? Eles podem bombardear-te, tu podes bombardeá-los, eles podem bater-te, tu podes bater-lhes, está tudo bem. Foi o que fizeram nos séculos passados. “Poder é razão” (trocadilho com a rima “Might is right”, em inglês). Todos tentaram bater nas pessoas e ocupar os lugares, colonizá-los e tudo mais. Fizeram muitas atrocidades em nome do “Poder é razão”. Muitas religiões apoiaram isso também, em nome da religião fizeram-no.
Assim sendo, o crescimento enquanto ser humano está na minha capacidade de agir conforme o dharma, inicialmente com resignação, deliberação e um grande sistema de apoio, depois espontaneamente. Por espontâneo entende-se que te tornas santo. Essa santidade é o crescimento de um ser humano, isso é ser espiritual. Dizemos que alguém é espiritual em relação a outra pessoa que não cresceu nesse sentido. Toda a gente tem de crescer nessa direcção e a partir daí crescer por sua própria iniciativa. Se não crescemos tornamo-nos pessoas emocionalmente atrofiadas. Não é por mais ninguém que eu cresço, é porque estou desenhado para crescer, logo devo crescer e tornar-me uma pessoa completa. Na minha própria auto-estima sinto-me muito feliz, na perspectiva dos outros também passo, mas não é esse o critério para o meu crescimento. Na minha própria estima vejo-me como livre de culpa e desse crescimento atrofiado e logo vivo bem comigo próprio.
A relação entre moksa e essa santidade, a relação entre viver de acordo com o valores e moksa é que apenas para esta pessoa existe moksa. Não entenderás que és o Todo se não fores compassivo contigo próprio. Eu sou ananda. Não posso sentir-me culpado e magoado e ver este conhecimento de que sou o Todo, não funcionará, é uma contradição, essa mente humana não consegue ver, esse ser humano não consegue ver isso. Logo, viver de acordo com o dharma e moksha estão altamente relacionados. Mesmo que uma pessoa não alcance moksha, será sempre uma pessoa virtuosa e isso, por si só, já é um dividendo, isso por si só já é crescimento e a partir daí moksha torna-se muito simples, é apenas um passo, é apenas aquela ligação – tat tvam – tu és isso, apenas essa ligação tem de ser feita, nada de especial.
Sobre kshanti, aceitação
Como agir quando nos é impossível aceitar um determinado comportamento de alguém em relação a nós? Deveríamos evitar relacionar-nos com essa pessoa ou confrontá-la?
Temos de estabelecer limites. Este valor existe para ti, mas também para a outra pessoa, quer ela o valorize ou não, deveria ser um valor para o outro também – kshantih. Então o que fazes? Acomodação é penas permitir que essa pessoa permaneça no seu espaço, “mantém-te no teu espaço mas sem me afectar”. Estabeleço limites para mim e também para o outro. Nas relações interpessoais esta é a coisa a fazer – estabelecer limites. Às vezes é muito difícil, mas é possível. Podes dizer à outra pessoa “pára, a partir daqui não podes passar”, ou “desculpa mas não consigo lidar com isto”. Na sociedade ocidental dizem isto com muita facilidade, os indianos não, têm muita timidez e consideração – “o que irão pensar?” – têm estas preocupações em demasia. Lá (referindo-se ao ocidente) eles não se preocupam nada! (risos). Estive na Holanda e aquelas pessoas são tão claras e abertas. Temos mesmo de criar limites – arantih jana samsari.
Sobre aratih jana-samsadi,
A maioria de nós vive em sociedade. Onde está o equilíbrio entre uma interacção social saudável e ter tempo de qualidade para si próprio?
Tens de escolher que tipo de vida social vais viver. A vida social também ajuda a pessoa a crescer, no entanto, não pode ser um estilo de vida sem qualquer significado, que vá arrastando a pessoa indefinidamente. Não queremos que as pessoas sejam reclusas mas tão pouco que corram atrás de uma socialização que implique beber, dançar até altas horas da noite e toda uma variedade de outras coisas. De certa forma, parece que socializar passou a significar altas horas da noite. Temos de criar o nosso próprio círculo social. Organizar um jantar tranquilo e convidar os amigos. Mudar hábitos. Tu próprio inicias isso. E há muita gente que vai adorar ir. Desta forma, crias a tua própria sociedade, é assim que deve ser. Temos de criar o nosso próprio sistema de suporte, não podes esperar apoio num sistema social como falámos no início, porque serás arrastado para esse estilo de vida. Então criaremos a nossa própria sociedade e haverá cada vez mais gente nela. Com tempo, as coisas começarão a mudar. Por outro lado, existe o respeito pelo tempo de cada um, pela privacidade. Convidas as pessoas para fazerem um sat sang, uns bhajans, trocar perguntas e respostas e mesmo para dançar, sem beber, quando muito uns refrigerantes ou o que quer seja moderado nessa cultura. E pode ter-se também alguma música, que seja um pouco mais “séria” (risos). Então desta forma criamos a nossa própria sociedade e haverá muita gente interessada em começar uma vida assim, encontrarás essas pessoas porque há muitas que estão apenas à espera desse tipo de iniciativas.
Sobre vairagya, desapego
Swamiji pode explicar a diferença entre vairagya e egoísmo? Algumas pessoas, no ocidente, tomam um pelo outro. Por exemplo pensam que ter algum vairagya perante as relações é egoísmo.
Não há qualquer egoísmo, vairagya é desapego. Existe algum mal entendido em torno de vairagya, mas deve ser removido. Vairagya deve ser entendido da seguinte forma: se numa relçãao entre duas pessoas um dos parceiros diz “eu tenho desapego”, não é muito boa ideia, não é deste vairagya que estamos a falar. Vairagya é perceber a ausência de conexão entre aquilo que fazes e aquilo que queres, isso é vairagya. Eu quero Moksha mas faço outra coisa qualquer, não há qualquer conexão. Mas vejamos um exemplo, numa relação um dos parceiros quer um filho e o outro não, aí está um problema. Aquele que quer o filho dirá ao outro que ele é egoísta e que só pensa na sua própria felicidade. Mas ter uma criança é vairagya. Se fazes algo, mesmo sendo aquilo que não queres, isso também é vairagya. Se o outro quer, nós fazemo-lo feliz, é a melhor coisa a fazer. E assim tornas-te maior. Vairagyaserve para ajudar-te a tornar-te uma pessoa maior, não menor. Em nome de vairagya não podes tornar-te menor. Tens de dar. Assim sendo, fazes feliz a pessoa que amas. Já resolvi este tipo de questões entre casais tantas vezes… A mulher chega aqui e diz-me “eu quero um filho mas ele é espiritual e não quer”, E eu pergunto ao marido: “o que tens a perder”? A paternidade é uma coisa muito boa para antharkarana shudhi. Fazer a outra pessoa feliz é o que vairagya é. Na tua vida há uma pessoa que amas e precisas dela para alimentar o teu ego, que espécie de vairagya é esse? É falso vairagya, mas acaba por ser visto com esse nome. Então, sê objectivo, se existem as condições para criar a criança adequadamente a decisão deve ser dos dois. Ambos têm de decidir “ok, vamos ter um filho”. Se já não estiveres na idade certa, se houver algum risco envolvido, nesse caso não te incomodes com o assunto, mas se for seguro ter uma criança deves seguir isso. A paternidade é uma coisa linda. A mulher é desenhada para ser mãe, de outra forma todo aquele sofrimento por que passa, mês após mês, seria inútil, esse distúrbio hormonal e tudo o mais seriam um disparate. Elas têm de passar por tudo isto porque são desenhadas para a maternidade e o próprio sistema biológico quer isso. Até por volta dos 30 anos não se interessa, a partir daí o desejo começa e, por vezes, acaba por ser tarde de mais. Por isso dizem que se deve ser mãe quando é saudável. Estas pessoas modernas preferem ser livres, sem filhos. Também com um filho se pode ser livre. Tudo depende… Livre para fazer o quê? Se tiveres uma criança não podes sair até altas horas… Se gostas de ser mãe isso já é sucesso, não precisas de qualquer outra liberdade. É uma confusão de valores. Vairagya deve ser bem entendido. Uma criança não resolverá todos os problemas, isso é vairagya, mas resolverá alguns. Aquilo que uma pessoa não recebeu dos seus pais na infância pode dar aos seus próprios filhos e assim processar tudo isso. Esse inconsciente tem de ser liberto, é um kashaya, e para isso a maternidade e a paternidade são a melhor coisa. Se for possível a pessoa deve ter filhos.
Sobre anabhishvangah putra-dara-grhadishu– Ausência de obsessão em relação a filhos, mulher e lar.
O Swamiji costuma dizer “Somos todos apaixonados pelo Eu satisfeito”. Como encontrar amor e liberdade nas relações?
A afeição é necessária, abhishvanga é afeição, e é necessária para os seres humanos, eles requerem afeição e esta fá-los sentir amados, o que parece ser uma grande necessidade. A criança não entende “eu sou amada”. Nenhuma criança percebe isto. Se a mãe se afasta por alguma razão ela imediatamente pensa “eu não sou amada”, esta é a forma de pensar de uma criança. Assim sendo, o que devemos fazer é tornar esse carinho e afeição objectivos. Cuidar é uma coisa maravilhosa. Tu dás e fá-los sentir acarinhados. Outra coisa é a obsessão, estar constantemente preocupado “o que vai acontecer, o que vai acontecer, o que vai acontecer” isso é obsessão. “Como vou sobreviver sem esta pessoa”, tudo isso é obsessão. Tenho de entender que tudo é oferecido por Ishvara e que tenho o meu círculo, o meu pequeno círculo de relações dentro do grande círculo, logo é dele que eu tomo conta. Tenho de fazê-lo e gosto de fazê-lo pelo que se torna seva, torna-se a tua contribuição. Uma criança é-me dada, sob o meu cuidado, sob o meu amor a criança vai crescer, então asseguro-me que ela cresça bem, no seu espaço, sem tentar controlar, amor não é controlo. Fazemos frequentemente esta confusão entre amor e controlo ” eu amo-te por isso senta-te!”, isso é um problema. Assim, dá espaço à pessoa para que ela possa ser livre, para que ela possa expressar o seu amor. Não é fácil, porque onde há amor a obsessão espreita, o controlo, o ciúme, o medo espreitam, pelo que devemos estar devidamente conscientes de que fomos criados por uma lei, cada um crescendo no seu tempo (tradução da palavra pace, Swamiji inicia aqui um trocadilho com as palavras pace e space). Tempo e espaço são coisas diferentes, então devemos entender que cada pessoa cresce no seu tempo e espaço. Isto significa que não podes esperar o crescimento imediato da criança, ela tem de crescer no seu próprio tempo, como o botão de uma flor desponta no seu devido tempo, não podemos apressá-lo, isso é amor – permitir que a pessoa cresça no seu tempo e espaço, isso é anabhishvangah putra-dara-grhadishu. Se estamos a falar de um objecto (uma casa, um carro,…) é a mesma coisa. Cuidamos das nossas coisas, mantendo o carro limpo, oleado… O carro não deve ser uma extensão de mim mesmo, noto que algumas pessoas lhe dão uma ênfase
excessiva, chama-se a isto valor exagerado, a pessoa projecta-se noutra coisa qualquer. Isto é um problema de auto-imagem, um bom estudo de Vedanta levará tudo ao sítio. Um correcto estudo de Vedanta resolverá este problema de auto-imagem. Se eu sou o Todo onde está o problema de auto-imagem? Então, isso vai-se quando correctamente entendido, por isso temos de ensinar.
[1]Might Is Right ou The Survival of the Fittest, é um livro do autor com o pseudónimo Ragnar Redbeard. Considera-se que advoga o Darwinismo social e que tenha sido publicado em 1890. Nesta obra o autor rejeita as ideias convencionais dos direitos naturais e humanos e argumenta que apenas o poder físico e da força podem estabelecer a ordem moral.
Apresenta-se agora a segunda parte da entevista subordinada aos temas o ensino do Yoga na actualidade e o Professor de Yoga na Sociedade, resultante das conversas entre Pedro Kupfer e Ana Sereno.
O ensino do Yoga na actualidade
Hoje em dia, no Ocidente, o yoga aparece cada vez mais como técnica e menos como cultura. Achas que existem cada vez menos professores de yoga e cada vez mais professores de técnicas de yoga?
Neste momento de popularização extrema do yoga, não apenas no Ocidente, mas na Índia também, existem muitos professores de técnicas e poucos yogis.
Desde antigamente, o yoga nunca foi dirigido ao grande público. Se formos procurar nos shastras verificamos que o yoga nunca foi destinado às massas. Krishna diz a Arjuna na Baghavad Gita “são poucos os que têm interesse em moksha e, desses poucos, menos são os que conseguem realizar alguma coisa, e destes, são muito menos ainda aqueles que conseguem realizar a vida na sua plenitude máxima”. Neste sentido, se formos ainda mais para trás até às Upanishads, lê-se aquela afirmação da Katha Upanishad que fala sobre o fio da navalha “estreito é o caminho”. Não há muita gente disposta a andar no fio da navalha. Então yoga como fenómeno para o combate ao stress, para a manutenção da saúde e do bem–estar é uma coisa, agora yoga como caminho para moksha, como instrumento para colocar em prática o auto-conhecimento é para poucos e neste sentido, deparamo-nos hoje com esse paradoxo de ver muita gente a ensinar yoga, transmitindo técnicas baseadas na presunção de que yoga é um sistema para manter conforto, bem-estar e saúde e poucos, inclusivamente dentro da nação dos professores de yoga, o vêem como o que ele desde sempre foi – o caminho para a liberdade.
A diferença poderá estar vinculada com o estilo de vida ou com a cultura à qual o professor pertence?
O estilo de vida ou a cultura na qual nos inserimos são secundários em relação a isso. Voltando à Baghavad Gita, quando Arjuna pergunta a Krishna “como age esse yogi liberto?” ele quer saber como reconhecer o sábio, mas olhando por fora não existe nenhuma diferença. É como diz o ditado do budismo zen – “antes da iluminação cortar lenha, carregar água. Depois da iluminação cortar lenha, carregar água”. Não muda nada. Se o estilo de vida era ocidental deverá continuar a sê-lo e se era oriental, igualmente. A pessoa aprecia as coisas da própria cultura e sociedade e dá-se conta que precisa de devolver alguma coisa para esta mesma sociedade onde nasceu. Ela não renuncia à sociedade, desconsiderando tudo o que ela lhe deu de bom, isso seria uma atitude de ingratidão. Tudo o que nós somos e temos veio da sociedade. Na Índia existem dois nascimentos, o primeiro e o segundo no qual o hindu recebe o cordão Yajñopavitam, com três fios – ida, píngala e sushumna; tamas, rajase satva; os três princípios da realidade. Eles representam três dívidas que a pessoa tem de pagar: a dívida para com os ancestrais (pitra rihna), que se paga tendo e educando os filhos e assistindo e cuidando dos pais; a dívida para com os sábios (rishi rihna), que ensinam a arte de viver ou a vida de yoga e que se paga ensinando a próxima geração; a dívida para com a sociedade (dharma rihna), segundo a qual eu devo dedicar uma parte do meu tempo para o bem-estar das outras pessoas.
Qual o papel do karma yoga na vida de um professor?
Existe um consenso em alguns sectores da nação yogika que diz que a sua maneira de pagar a dívida com a sociedade deveria acontecer levando o yoga até às pessoas que à partida poderiam não ter acesso a ele. Neste sentido, o professor de yoga não precisa deixar de fazer a sua actividade, mas dentro daquilo que faz, dedica um momento, da sua semana ou do seu dia, aos demais, levando o yoga até aqueles que não conseguem ter acesso à sua escola, ensinando em hospitais, instituições ou prisões, por exemplo. Neste contexto, então, karma yoga é o que se conhece como o yoga da acção social.
O papel do karma yoga é, por um lado, o pagamento dessa dívida que o ser humano tem desde o nascimento e, por outro lado, tem a função de acumular punya, através da acção adequada, que é aquela que é meritória e que traz paz e tranquilidade.
Que estilos de vida estão em consonância com o dharma?
Todos. Qualquer sociedade humana sempre criou formas de interrelacionamento, nas quais aquele princípio áureo do dharma de não fazer aos outros aquilo que não gostaria que fizessem comigo, estivesse sempre presente. Se considerarmos estilos de vida como formas em que a sociedade se organiza, todos os estilos de vida, de todas as civilizações, culturas e continentes, estão baseados no dharma. Agora, dentro de uma sociedade, seja ela qual for, nós vemos que existem indivíduos com estilos de vida diferentes. Quando um estilo de vida atropela esse princípio áureo da equidade e do equilíbrio e a pessoa exige mais do que dá, então isso chama-se de conduta adhármica ou que vai contra o dharma. Logo, os estilos de vida que estão em consonância com o dharma são aqueles nos quais o indivíduo, a família, ou a nação respeitam o direito comum e reconhecem que o outro, seja homem ou mulher, branco ou negro, cristão ou pagão, muçulmano ou judeu, hindu ou budista, têm os mesmos direitos do que eu.
Como procedes quando as tuas preferências não coincidem com o dharma?
As preferências de cada um não são as preferências do Ser, porque o Ser não tem ego. Quando ganhamos aquilo a que se chama livre-arbítrio temos de aprender a usá-lo e, para isso, se não formos capazes de nos colocar no lugar do outro, os frutos das nossas acções vão-se voltar contra nós. Assim, liberdade é algo que precisa de ser bem compreendido para procedermos quando as preferências do ego não coincidem com o bem comum. Se eu perceber que alguma preferência que eu tenha esteja a prejudicar o bem comum, outros seres vivos, ou a mim mesmo, renuncio a essa preferência, ela deixa de ter valor porque existe um valor maior, que é o dharma.
Onde se situa a barreira entre o professor e o empresário?
Tradicionalmente, o yoga sempre foi ensinado dentro de famílias, em grupos pequenos ou “tête a tête”. Conforme vai aumentando a procura, o mercado responde gerando mais professores. O sistema capitalista tende a massificar meios de produção e de consumo, então para baixar o custo aumenta-se a produção. A diferença entre um grupo de yoga dentro de um esquema de produção massiva e um grupo pequeno de alunos que se ensina em casa, é equivalente à diferença entre a guitarra que foi feita na cadeia de produção e a outra, que foi feita por um artesão, sozinho em sua casa, e com tempo para trabalhá-la. Nesta sociedade contemporânea em que vivemos temos muito o paradoxo do cash&carry, não queremos esperar.
Mas a resposta a esta pergunta é que não existe barreira. Cada um escolhe de que forma se vai relacionar com o trabalho de yoga. Algumas pessoas vão olhar para o yoga como um produto e, analisando, o mercado, vão ver de que maneira aquilo poderá ser apresentado para que tenham um retorno. O foco para o professor-empresário deveria ser ainda o yoga e não apresentar o yoga como um meio para aplicar a mais-valia em professores e pensar em massas de alunos para ter retorno financeiro. Em todo o caso, este é um efeito subsequente, não deveria ser o foco. Há um fruto que retorna para o professor a partir do seu trabalho. Mas o foco para o ensinamento é moksha não é dinheiro. Ali está a diferença entre o professor-empresário em sintonia com a essência do yoga, e o outro que está focado apenas em ganhar dinheiro. O que busca moksha, paradoxalmente, obtém um resultado por vezes mais eficiente do que aquele que está centrado no dinheiro, porque este, muitas vezes, perde a credibilidade e perde o apoio das pessoas. Ninguém quer praticar com alguém que está centrado única e exclusivamente no dinheiro.
Eu gosto sempre de olhar para a forma com que se lidou com as questões na tradição do yoga, nos tempos passados, e sempre houve pagamento ao professor (dakshina – que quer dizer direito). O Yoga nunca foi dado de graça, o conhecimento nunca foi de graça. Então, findos os estudos o aluno tinha a obrigação de dar dinheiro ao professor. Na Taittirya Upanishad, que é uma das mais antigas, descreve-se a situação de um menino que está a deixar a casa do professor na qual dormiu, aprendeu e estudou, durante anos e tem de deixar dinheiro antes de partir. Conta-se que este menino entrega o que é descrito como um presente digno (naquela época, vacas, tecidos, grãos…) e havendo oferecido este dakshinao professor dá-lhe um discurso final sobre como ele se deve comportar dali por diante. Quando o aluno não tinha meios, pedia um mecenato, pedindo dinheiro ao Rei, que financiava os estudos dos alunos que não podiam pagar, pois aquele era o destino natural de uma parte dos impostos que ele recolhia da sociedade. Uma parte desses impostos ia para a manutenção de templos, estradas, obras públicas, e outra parte ia para financiar a educação daqueles que não tinham posses. Então, sempre houve uma retribuição do trabalho do professor, mesmo que não viesse directamente do aluno. Dinheiro é uma forma de energia, é a energia de Lakshmi que é a Deusa da saúde, da beleza e da prosperidade. Em sintonia com Lakshmi, se eu me dedico ao meu trabalho e se dedico os frutos do meu trabalho a Ísvara, naturalmente vem alguma coisa para mim nessa forma de energia, que se chama dinheiro. Se eu não tiver como foco fazer muito dinheiro, é provável que eu ganhe mais do que se estiver totalmente centrado nessa ideia. O professor trabalha relaxado, porque ele faz o trabalho pelo dharma e aquilo é mais uma consequência, juntamente com os outros frutos que se ganham e que são imensuráveis.
O professor de Yoga na sociedade
Porque é que frequentemente os professores de yoga são vistos como indivíduos que vivem uma vida de sacrifícios e privações?
Depende muito do olhar de quem faz o julgamento. Pessoalmente, não acho que seja sacrificante ou difícil escutar ou repetir o ensinamento do yoga e, basicamente, o professor de yoga é alguém que partilha a prática com as pessoas porque ele próprio precisa de fazer essa prática e de ouvir o ensinamento. Então, dá-se aqui um processo de retroalimentação. Se nós escolhemos ser professores porque nos demos conta de que o ensinamento é interessante, é importante e precisa de ser compartilhado, qual é o sacrifício em ficar perto disso? Talvez as pessoas olhem dessa forma para o professor de yoga, porque acham que a vida deste professor não tem nenhuma alegria. Se o professor de yoga não tem aquela vontade de adolescente de sair à sexta à noite e de andar sempre pelas festas, talvez quem olhe de fora pense “coitados, eles acordam cedo, não podem comer carne, não podem beber, não podem sair à noite…” . Mas é tudo uma questão de prioridades, nada é imposto ou forçado. Muitas vezes o que as pessoas não se apercebem é que aquele desapego que foi exercido sobre estas pequenas situações do quotidiano, ou sobre a alimentação, foi exercido porque aquilo deixou de ter valor, não há um sacrifício. O facto de algumas pessoa seguirem um ritmo e outras seguirem outro diferente, faz com que as pessoas que seguem o ritmo predominante vejam as as outras como se elas se sacrificassem. Mas a bem da verdade, o professor de yoga não se priva de nada, ele definiu quais são as suas prioridades e age de acordo com elas.
Como agir para desmistificar a ideia de que o professor de yoga é um ser alienado da sociedade com hábitos diferentes, pontos de vista diferentes, valores diferentes…?
Depende do que se entender por sociedade e por alienação. Na verdade, a presumida alienação do yogi não é uma alienação grave porque esta, literalmente, aplica-se a alguém que não pertence à sociedade. O professor de yoga constrói o seu próprio caminho nas seguintes bases: ele respeita as leis, mas não só respeita as leis humanas como também olha para o dharma que é a lei da harmonia universal e que tem regras que não estão escritas na lei humana. O dharma fala sobre o convívio entre os humanos, mas também da relação destes com a natureza, o cosmos e as gerações futuras. Nesse sentido, existe um compasso entre o ponto de vista do yogi e o ponto de vista prevalecente na sociedade, em que o primeiro não está apenas respeitando a lei porque é necessário, senão porque ele próprio opta por levar uma vida em harmonia com o dharma, pois isso redunda num bem maior para si e para a sociedade. Depois, como o professor de yoga também é uma espécie de embaixador de outra cultura, porque a cultura do dharma nasceu no Oriente, através do budismo e do hinduísmo, tem algumas coisas que são ligeiramente diferentes – alguns símbolos, roupas… mas isso acaba por funcionar como uma marca de identidade que todos os grupos sociais têm. Os surfistas têm a sua linguagem, o seu lugar de encontro, os seus lugares sagrados como Bali e Hawai. Numa palavra – os professores de yoga também formam uma sub-cultura.
Porque se criam quase comunidades de professores?
Quando não nascemos numa família de yogis, mas nos reconhecemos como tal, é natural que o estilo de vida daqueles que compartilham os mesmos ideais nos atraiam. Então as comunidades são, na verdade, famílias, kulam em sânscrito, que quer dizer clã ou família estendida. Eu tenho uma família biológica e depois tenho outra família que é a família do yoga. Esta família não é uma abstracção, entre ela criam-se laços que permanecem em harmonia, tolerância e aceitação mútua, sendo o resultado desta convivência positiva. Então, esta comunidade é uma família, com todos os problemas que uma família tem mas que não se separa por causa do dharma que mantém as pessoas unidas, dentro do mesmo ideal e objectivo – Moksha. Este objectivo vence todas as diferenças que existam entre os membros da família. Quando olho para um colega praticante vejo alguém que caminha na mesma direcção que eu.
Como lidar com os amigos, com as limitações que eles projectam em nós?
Amigo que é amigo vai compreender o que o amigo está a fazer e mesmo que não compartilhe o mesmo ideal ou a mesma visão a amizade não muda.
Como permanecer integrado numa comunidade cujas estruturas sociais estabelecidas, sobretudo para os mais jovens, marginalizam aqueles que não respeitam essas estruturas?
Isto Tem a ver com as sub-culturas que naturalmente se formam dentro das grandes estruturas culturais. Enquanto eu me enquadro nesses valores, repito esses gestos, pertenço a essa sub-cultura, mas se em algum momento eu deixo de ostentar esses símbolos sou colocado para fora pela minha própria atitude.
Neste sentido, as estruturas das tribos dos jovens por mais que pareçam coloridas, modernas e abertas são medievais, super fechadas “ senão pensas como eu és um alienígena”, “eu só falo com quem fala a minha língua”. Então quando temos amigos dentro de uma destas tribos, se eu mudo a minha forma de ser, mas a amizade existe, ela não se perde. A resposta à pergunta é que é impossível. O facto de eu viver a vida de yoga e seguir os seus valores não me vai colocar fora da sociedade mas é possível sim que, em algum momento, alguma pessoa observe ou se dê conta e mude determinados hábitos – como deixar as drogas ou o álcool. A pergunta que eu faço é: eu preciso de pertencer a um grupo no qual eu sou julgado pelos meus actos e do qual eu vou ser irradiado se os meus actos não se encaixarem com os actos que esse grupo aprova? Posso pertencer se para mim isso for importante, por uma questão de identidade cultural, mas se eu achar que não preciso disso não fico, e as amizades verdadeiras vão permanecer por mais que as pessoas naveguem em navios diferentes.
No mês de Agosto de 2008, aquando da sua estadia em Portugal para orientar a sua primeira Formação de Professores de Yoga fora do Brasil, Pedro Kupfer respondeu pacientemente a uma longa lista de perguntas acerca do que significa ser professor de yoga. As opiniões deste experiente professor sobre a missão daqueles que querem passar o ensinamento e o cenário actual do ensino do yoga para ler nesta entrevista.
A Entrevista será publicada em 2 partes. Apresenta-se aqui a primeira.
A Formação
É a primeira vez que trazes esta formação para fora do Brasil? O que te motivou a fazê-la em Portugal?
Sim, é a primeira vez que ministro esta formação completa fora do Brasil. Já havia visitado Portugal várias vezes anteriormente, mas nunca conseguia aceitar convites para dar cursos, pois apenas passava pela Europa, nas viagens entre o Brasil e a Índia. Dois anos atrás, depois de recusar vários convites por esse motivo, consegui finalmente vir. Gostei tanto do que vi em Portugal que passei a incluir a terra de Camões no meu roteiro anual. Ano passado, conversando com o professor Miguel Homem, achamos que já havia um número suficiente de praticantes motivados para participarem do curso de formação, que é bastante exigente. Ele organizou belamente a primeira turma e o resultado superou todas as expectativas, tanto em termos humanos, quanto em termos de prática e estudo.
Pelo que conheces da realidade do Yoga em Portugal, como descreves o cenário da formação no nosso país?
Considero que é um privilégio participar deste momento tão especial que o Yoga está vivendo em Portugal. Percebo que muitas pessoas estão começando a “sair da casca”, a ampliar a própria visão da prática e do trabalho com Yoga. Isso me deixa muito contente e motivado para continuar esse processo. A iminente fundação do que poderá ser a Aliança do Yoga em Portugal é mais um sinal de que as coisas estão mudando para melhor aqui, uma vez que a comunidade de professores e praticantes é coesa e motivada para fazer um trabalho autêntico e transmitir livremente a tradição, desvencilhando-se das formas sectárias ou distorcidas que prevaleceram nas décadas anteriores.
Consegues identificar diferenças na forma como o Yoga é ensinado em Portugal, relativamente ao Brasil?
Não percebo alguma diferença essencial, já que o Yoga é universal e a forma de transmiti-lo não tem mudado significativamente ao longo dos tempos. Porém, percebo uma grande sede de aprender e motivação muito profunda nos portugueses, e isso faz uma bela diferença no resultado.
E os portugueses? Qual é a tua opinião sobre esta primeira “fornada” de professores formados por ti?
A convivência com os praticantes daqui foi a coisa mais agradável que vivi este ano! Como disse acima, fiquei admirado com a firmeza da resolução dos portugueses em aprender. Lembre que o professor somente realiza sua missão quando há praticantes motivados para aprender. De nada adianta sabermos muito, se estamos sozinhos e sem poder compartilhar aquilo que amamos. Essa motivação poderá ajudar imenso esta primeira geração de professores a superar as eventuais e inevitáveis dificuldades que possam surgir ao longo do caminho de cada um. Igualmente, impressionou-me a solidariedade, a flexibilidade e a harmonia no convívio que tivemos durante este primeiro módulo na Quinta das Águias, em Paredes de Coura.
Ser Professor de yoga
O que deve um professor de yoga cultivar?
Na verdade, esta pergunta já está respondida no código de conduta yogíca. São aquelas dez coisas que Patãnjali propõe, ou aquelas outras vinte que estão no código de conduta de Svatmarama, que estão na Hatha Yoga Pradípika. No mínimo dos mínimos o professor de Yoga deveria cultivar o código de Patãnjali.
Qualquer código de conduta é baseado na importância que a sociedade dá ao dharma e a regra de ouro do dharma é “não faça aos outros aquilo que não gostaria que eles fizessem consigo”, portanto, ahimsa é a base para tudo. Neste sentido, o professor de yoga precisa de saber que ele é, em primeiro lugar, um yogi e, em segundo lugar, um professor de yoga. Isto não pode ser invertido.
O yogi deve então cultivar a não violência, no sentido em que todos à sua volta não devem vê-lo como uma ameaça. Esta é a primeira coisa que a pessoa deve cultivar, primeiro como ser humano, depois como yogi e em terceiro lugar como professor. Sem ahimsa não há humanidade no ser humano.
Satya. O professor tem de ser verdadeiro. Não pode dizer uma coisa e fazer outra. Não pode haver incoerência entre o que se pensa, o que se diz e o que se faz. Mas também isto é aplicável primeiro ao ser humano, depois ao yogi e em terceiro lugar ao professor de yoga. A questão é que este está numa situação peculiar pois ocupa uma determinada imagem na sociedade. Dentro da sala o professor tem poder e é possível que os alunos idealizem e achem que ele é um santo, coisa que ele não é. Ele é um ser humano normal como qualquer outro, que aprecia as qualidades de um santo mas que, muito provavelmente, ainda não se conseguiu estabilizar dentro destas virtudes. Se formos olhar para os exemplos do passado, há muito poucos de conduta irrepreensível. Apesar de tudo, sejam quais forem os problemas que o professor de yoga tenha, nunca deveria derramá-los para dentro da sala ou para cima de alguém – isto é continência, que nos yamas aparece como bramacharya em relação à conduta, e que no código dos nyamas aparece como esforço sobre si mesmo ou tapas, que é a capacidade de criar um limite para si mesmo, e de crescer a partir desse limite.
Neste contexto cabe ainda asteya, não tirar aos demais tempo, energia ou emoções e tão pouco permitir que os outros façam isso consigo. Assim, na sua conduta o professor de yoga também deve ser parcimonioso ao não exigir dos outros professores, dos amigos, da família, dos alunos o seu tempo, por exemplo.
Aparigraha, que se traduz como satisfazer-se com o mínimo, e que pode ser resumido com duas palavras – não possessividade – é outra questão interessante para o professor de yoga cultivar. Todos nós, naturalmente, queremos o mínimo, mas querer o mínimo e entendê-lo não é a mesma coisa. Na medida em que o yogi estiver tranquilo em relação à questão da abundância do Universo e estiver sintonizado e aberto para ela, a prosperidade flui em direcção a si, isto está no Yoga Sútra – quando a pessoa se contenta em ter o estritamente necessário, todas as riquezas fluem em sua direcção.
Estes são os primeiros cinco yamas de Patañjali que o próprio afirma serem elementos universais, ou seja, eles deveriam ser cultivados por todas as pessoas, independentemente de posição social, de profissão, de tempo, de lugar ou de circunstância. O professor de yoga especialmente deveria cultivar isto – coerência, veracidade, honestidade e não-violência.
O que é que um professor de yoga pode ter de sobra e o que não deve ter nem um bocadinho?
Na minha opinião, o professor de yoga não deveria ser chato. Ninguém vai querer praticar com um professor chato. Não importa se a pessoa sabe muito, fala bem, tem um belo sotaque. Não importa as palavras que usa, o discurso, o currículo. O professor de yoga precisa de ser um “cara bacana”, tem de ser uma pessoa de boa índole, de carácter, que tenha abertura e simpatia para comunicar com os praticantes.
Swami Vivekananda dizia “cara feia não é sinal de espiritualidade mas sim de disepsia”. Ás vezes, vemos alguns jovens entusiastas e alguns velhos “avinagrados” assumirem uma postura absolutamente seca e amargurada. Pode ser apenas uma opinião minha, mas se eu vejo que Patãnjali fala em santosha e que Krishna fala a Arjuna de kshanti, que é essa capacidade de estar tranquilo, de estar em paz, de estar feliz por mais que a situação seja de instabilidade, aceitando o fluxo do devir, então isto é o que não deve faltar a um professor de yoga
O que distingue um professor de um praticante experiente e dedicado? Para além da formação, ao primeiro colocam-se mais exigências?
Dependendo daquilo que entendermos por experiente e dedicado, a diferença pode ser apenas o facto do professor ensinar. Se este praticante é um yogi e se o professor também é um yogi, a única diferença formal é que um dá aulas de yoga e o outro tem outra actividade.
Não diria que se coloquem mais exigências ao professor, porque um praticante dedicado, um yogi, não vai ter uma conduta diferente da conduta do professor e espera-se, igualmente, que este também tenha a conduta de um yogi, portanto, neste sentido, não podem haver diferenças. Se existirem, é pelo facto de o professor de yoga ter assumido como adequado que todas as suas acções girassem em torno do yoga, o que não quer dizer levar uma vida de yoga. Um praticante sério e dedicado pode viver uma vida de yoga sem ser professor, sem ter apenas amigos praticantes, sem frequentar apenas ambientes de yoga, sem ser casado com um professor de yoga ou com outro praticante… Viver uma vida de yoga é sermos capazes de aplicar o ensinamento no quotidiano.
Uma melhor compreensão do yoga faz com que uma pessoa se afaste em relação a hábitos como sejam o álcool, o fumo, as drogas ou uma alimentação desequilibrada?
Sim, porque esta lista de coisas são atitudes auto-destrutivas, ou seja, não têm ahimsa. Na medida em que nos tornamos conscientes de que as nossas decisões nem sempre foram nossas, mas que vieram na forma de condicionamentos externos, quando aprendemos a discernir o que é bom e o que não é bom para nós, naturalmente, afastamo-nos do que é mau, pernicioso e perigoso e estabelecemo-nos dentro daquilo que é sadio. Desta maneira, existe o pratyahara, que é o quinto passo do Yoga de Patãnjali e que tem o objectivo de fazer a pessoa ver o que lhe faz bem e afastar-se daquilo que não lhe faz bem. Desta forma, a prática dentro da sala duas vezes por semana, nem que seja só de ásana e pranayama, serve como um gatilho para desencadear iniciativas de mudança para melhor nos hábitos da pessoa.
Estarão estes hábitos relacionados com a cultura onde cada um se insere ou serão uma realidade intrínseca da cultura do yoga?
Onde o yoga nasceu, o vinho, por exemplo, é algo recente. Na Índia, o consumo de álcool é algo muito mal visto. Culturalmente falando, o hábito de comer ou beber “maconha” em algumas festas não é visto da mesma forma como beber álcool. O objectivo não é o mesmo daquele que se procura quando se faz uma festa no Ocidente e se oferece champanhe aos convidados. O consumo desta droga na sociedade indiana está directamente associado com a devoção às formas do divino. No Holi, que é o aniversário de Krishna, todos os indianos, novos ou velhos, tomam bhang lassi, mas é uma vez por ano e com aquele objectivo. Agora, nunca vi um professor de yoga indiano com uma lata de cerveja na mão.
Como é que estes hábitos estão descritos nos textos antigos?
O consumo de álcool, na forma de ritual, aparece no Kularnava Tantra, mas não é embebedar-se, muito menos todos os dias, é beber um cálice de vinho num ritual que faz parte de uma ideia maior que consiste em quebrar com os condicionalismos que a sociedade coloca no indivíduo, dentro daquela cultura. Este ritual chama-se panchamakara – o ritual das cinco letras “m”. No quarto capítulo do Yoga Sútra diz-se que existem yogis que entram em samádhi, usando aushadhi que se traduz como erva, e que no contexto em que Patãnjali a coloca se refere ao haxixe, ao ópio e à maconha. O Yoga Sútra apresenta uma lista de práticas pois Patãnjali não ia deixar de registar aquilo que se fazia na sua época. Hoje em dia, há yogis na Índia que se vêm como continuadores do trabalho de Goraksha e que fumam maconha, são conhecidos como Nágabhavas, são shivaístas. Dentro dos vaishnavas existe um outro grupo de yogis que se conhecem como Kyaghis e que fazem a mesma coisa. Faz parte, então, da tradição e da cultura da Índia. Estes hábitos estão descritos nos textos, sempre dentro de contextos rituais.
A este propósito, saiu há tempos um artigo no New York Times, anunciando um retiro em Itália cujo mote era “Yoga and Wine – práticas e degustações de vinho”. Qual é a tua opinião sobre isto?
Se alguém me convidasse para um retiro de yoga com vinho eu não iria, porque se yoga trata de descondicionar, de livrar-se de hábitos mecânicos de condicionamento, yoga e vinho parece-me contrário ao propósito de moksha, liberdade e auto-conhecimento. Parece-me uma iniciativa da Kali Yuga, a época de conflito que estamos a viver, na qual a distorção do yoga é cada vez mais flagrante.
Em relação àqueles hábitos de que falamos, onde está a barreira para um professor de yoga? No exagero?
Sim. Nesta questão moderação talvez seja a palavra chave e depois a decisão cabe a cada um. Eu conheço um professor de yoga que fuma tabaco. Ele é um bom professor de yoga mas nunca conseguiu desenvencilhar-se daquele hábito de muitos anos e que por isso está muito enraizado…
Mas existem muitos outros problemas humanos que não estão nesta lista, os problemas emocionais, por exemplo. Às vezes as emoções transformam-se em vícios muito piores do que estes hábitos que listamos e se eu quero ser livre tenho de me livrar delas também. O professor de yoga pode não fumar, não beber, não comer carne mas isto é secundário, porque o principal é se ele está bem resolvido emocionalmente e se as suas acções, as suas palavras e as suas atitudes no mundo condizem com o estado de santosha (contentamento). Mais ainda, se ele é capaz de levar isso para o convívio com os demais e se ele é capaz de inspirar outras pessoas neste sentido.
Há um ditado taoísta do qual eu gosto bastante, não me recordo exactamente como é, mas didacticamente diz que às vezes algo que não faz muito bem ao corpo, mas que conforta a pessoa, é melhor do que livrar-se desse algo e ficar carente e desequilibrado por dentro.
A atitude subjacente à adopção ou rejeição de hábitos em consonância com o ensinamento deve ser de renúncia, aliada a força de vontade, ou de desapego?
A repressão não funciona. Reprimir ou conter sem haver entendido o porquê dá sempre errado. O que funciona e produz mudanças definitivas e duradouras nas atitudes das pessoas, o que promove a cura ou a transcendência em relação a um hábito auto-destrutivo, é a compreensão. Esta leva-me a exercer o desapego, que consiste em ver as coisas exactamente como elas são. Ao olhar para um hábito auto-destrutivo eu tenho de vê-lo exactamente como ele é – o consumo de tabaco é o consumo de tabaco e não é uma fonte de felicidade.
Intrinsecamente, renúncia e desapego são a mesma coisa, e quando eu vou trabalhar neste sentido eu vou também precisar de força de vontade. Tudo o que nós fazemos com apego fazemos porque, em algum nível, achamos que daquela acção vem felicidade. Quando nos damos conta disto as máscaras das coisas caem e, assim, se antes o fazíamos por hábito para podermos ser felizes, depois percebemos que a nossa felicidade não depende desse hábito. Isto é visão objectiva, ver as coisas como elas são.
Onde se situa a fronteira entre a liberdade individual do professor e aquilo que ele deve representar, enquanto um exemplo a seguir pelos alunos?
Esta é uma pergunta delicada. Pessoalmente, eu acho que não poderia haver nenhum milímetro de distância entre o que eu sou e o que eu demonstro ser. Estas duas coisas deveriam estar completamente coladas, de modo que, exercendo a honestidade, eu não esconda nunca questões que ainda não resolvi. Não pode haver incongruência, incoerência entre o professor e a pessoa. Não é sequer questão de ser professor ou não, mas de ser um humano coerente, estabelecendo uma coerência entre o discurso e a acção. O melhor exemplo que o professor pode dar, então, é simplesmente ser coerente.
Na tua perspectiva, qual a importância da prática pessoal para um professor de yoga?
Como ensinar a tocar violino sem saber quantas cordas tem um violino? Como ensinar algo sem possuir uma certa familiaridade e intimidade com aquilo que nos propomos a ensinar? Como se constrói um professor de yoga? A partir de um praticante sério e dedicado. A prática pessoal é fundamental porque dali vem o substrato com o qual se vai construir as aulas que se dão. Esta prática vai evoluindo e a aula é um reflexo de como está a prática pessoal do professor. Observamos que quando há pouco tempo e muito trabalho a pessoas sacrificam a sua prática pessoal. Mas o que entendemos por prática: é fazer ásana, meditação, pranayma, é estudar, é aplicar o estudo na vida quotidiana? Na vida de yoga, prática é ter um momento do dia para a sua reflexão pessoal, para o seu estudo, independentemente se isto é feito através de uma meditação de um pranayama de uma saudação ao sol, o que for… Depois a aplicação do ensinamento sobre o qual se fez a reflexão na prática vem para o quotidiano e aí sim temos um yogi, que é coerente entre o que faz e o que ensina.
Qual a importância para um professor de yoga de conhecer a Índia?
Nenhuma. Um professor de yoga pode ser um óptimo professor sem nunca ter pisado a Índia. Um exemplo disso é Georg Feuerstein que foi pela primeira vez à Índia há dois anos atrás e, no entanto, escreveu mais de 30 livros sobre yoga.
Existe aquela ideia de que ir à Índia funciona como uma pós-graduação. Pela ordem: eu sou um praticante dedicado, depois torno-me vegetariano, depois faço uma formação, dou aulas de yoga e faço uma viagem de estudos à Índia. Uma viagem de estudos pode ser feita para qualquer lugar. O conhecimento está onde estiver o professor, não necessariamente na Índia, principalmente nestes tempos globalizados em que vivemos. A Índia em si não tem o yoga, o yoga está na Índia como em muitos outros lugares.
Como hoje em dia existe aquela popularização massiva do yoga no Ocidente, muita gente viaja para a Índia em busca do yoga, tendo lá surgido uma nova geração de professores ambiciosos que não são honestos e que querem enganar estas pessoas. Quando fui à Índia pela primeira vez tive dificuldade em arranjar bons professores. Algum tempo depois, fiquei com dúvidas e decidi voltar para lá para reaprender tudo o que sabia, porque algumas coisas percebia que estavam equivocadas, para me reprogramar com alguém que me corrigisse tudo. No primeiro dia encontrei logo aquele que seria o meu professor, hoje em dia não é tão fácil. Recebo muitos emails de pessoas que dizem que vão para a Índia sem expectativas, de mente aberta, à espera que algo de mágico aconteça, mas geralmente, se a pessoa não prepara a viagem frustra-se. A Índia dos livros de fotografia não é a Índia, mas um pequeno ângulo dela.
Hoje em dia, os professores que se encontram na rua e que oferecem aulas de yoga ou sámadhi instantâneo, em 90% dos casos querem enganar as pessoas. Há menos de 10% de chance de encontrar um professor bom e honesto. O facto de estar na Índia não ensina yoga a ninguém. Pode ser uma experiência de vida, uma experiência gastronómica, musical, mas se o objectivo for yoga é necessário preparar-se antes, pesquisar, interrogar, pedir conselhos…