por casa-ganapati | Mar 14, 2021 | Blog, Destaque
”Não existe caminho para o crescimento espiritual sem compaixão”
Durante a nossa estadia no Arsha Vidya Pitham em Rishikesh, Swami Dayananda Saraswati, recordado da entrevista que lhe havíamos feito na Quintas das Águias em Outubro de 2008, propôs-nos responder a mais algumas perguntas. Foi com maior prazer e reconhecimento que preparámos a entrevista que se segue dedicada ao tema da Solidariedade. É também com o maior respeito que agradecemos ao Swamiji pelos momentos que nos dedicou e pela simpatia com que nos recebeu.
1. Por favor explique-nos a importância da solidariedade, ocupar o tempo ajudando os outros.
Todos nós temos de ajudar, porque precisamos de crescer emocionalmente, crescer para nos tornarmos pessoas auto-aceites. Não podemos permanecer pessoas inseguras. Se sou inseguro não consigo ajudar, quero é que o mundo inteiro me ajude (risos).
As pessoas aproveitam-se das situações. Uma pessoa frágil, ou que esteja numa situação de fragilidade, pode explorar em seu próprio benefício, e isso significa que é uma consumidora e não uma contribuinte. Para ser um contribuinte é necessário dar, ajudar. Este é o método para o crescimento, dando e contribuindo, tornamo-nos pessoas mais completas, mais compassivas. Quanto mais compassivos formos, mais nos aceitamos. Quanto mais inseguros formos, menos nos aceitamos. Isto alimenta-se, sou inseguro, logo não consigo dar e então deito a mão a tudo. Assim, quanto mais eu quiser agarrar, motivado pela minha insegurança, mais inseguro me tornarei.
Todos começamos a vida com alguma insegurança, mas crescemos transformando-nos em contribuintes. Quanto mais contribuir, mais seguro serei, quanto menos o fizer, mais inseguro serei. Assim, viver transforma-se em “ir levando”. Dei uma palestra sobre este tema:”Viver Vs ir levando”. Ir levando é apenas passar, viver só acontece quando contribuis.
2. Qual e a visão dos Vedas acerca deste tema?
Danena adanam tara, os Vedas dizem que temos de dar. Danena adanam tara. Vejam este ashram. Não cobramos, não pedimos nada, mas estamos a funcionar. Muitos sadhus vêm, muitas pessoas vêm e ficam aqui, e não temos quaisquer problemas. Funcionamos assim também nos EUA e é impressionante. Destacámos um novo gerente para o ashram de Coimbatore e ele tem os seus próprios problemas. Cobra tanto que ninguém pode vir aos cursos (risos). Deixo que seja ele a perceber o que está a fazer. O princípio não foi percebido. O princípio é deixar as pessoas tomarem conta do lugar, nós não tentamos fazê-lo, se o fizermos não conseguiremos, porque é enorme. Temos de deixar as pessoas cuidarem daquilo. Trazer as pessoas, isso é o trabalho que o gerente deveria fazer. Trazer mais pessoas e deixá-las cuidar do espaço. Apenas geres, não gastas o dinheiro, não o desperdiças, se gerires adequadamente, o dinheiro vem. Esse é o princípio, é cultural, é a nossa cultura. Danena adanam tara, se temos incapacidade para dar, isso é natural, mas temos de ultrapassá-la. Tara significa ultrapassar, isto é Veda, Sama Veda. “Au au au setumstara dustaran”[1], utiliza uma ponte (setu) para atravessar isso. Estas coisas são difíceis de ultrapassar, isso é adanam. Como ultrapassar o facto de não dar? Danena adanam, danena adanam, danena adanam…Danena adanam tara. Não dar é ultrapassado dando (risos). Fingir e agir, danena adanam.
Se não tens shrada[2], shradaya ashradam, com shrada significa agir como se tivesses. O que as pessoas que têm shrada fazem, tu fazes também. E shrada vem, isto é verdade.
Shradaya ashradam, akrodenam krodam, a raiva, por favor, ultrapassa através de akroda, a prática de não-kroda, não há outra forma. Não vitimizes as pessoas, neutraliza toda essa raiva krodenam krodam. Satyenam anrtam, pelo que é verdadeiro, ultrapassamos anrtam, o que é falso. Isto é Veda, Sama Veda e Yajurveda. Shradaya deyam, isto também é Veda. Aquilo é Sama Veda e isto é o Yajurveda de Krishna. Shradaya deyam. Deyam significa dar, com shrada eu dou. Ashradaya deyam, não dês sem shrada.
Assim, convidamos todos os sadhus para o bandhara[3], e fazemo-los sentirem-se obrigados a vir, não lhes fazemos sentir que estamos a dar-lhes comida, não. Fazemo-los sentir que é seu dever vir, isso é a verdade, isso é dar, isso chama-se shrada.
Eu não me posso curvar, tenho problemas na lombar, mas lá me vou arranjando com algum yoga, mas ainda assim, vou lá e faço namaskara[4] a toda a gente, seja quem for, não questiono, faço namaskar até aos bhramacharys[5] e às outras pessoas. Faço namaskar a toda a gente. As pessoas sentem-se bem, sabes? Mas para mim é real, não tenho qualquer pretensão, realmente respeito. Isso é shrada. Se não podes dar mais, ofereces a tua ajuda com humildade. Com o conhecimento acerca da pessoa a quem estás a dar, dá, quer ela aceite ou não. Por favor, assegura-te de que o destinatário da tua ajuda a aceita, mas ainda que não dá. Dá com o conhecimento daquilo que estás a dar.
Então, tanto, nesta tradição está relacionado com dar. Se olharmos para o trabalho voluntário na maioria dos países, o voluntariado como contribuição diária de uma pessoa só acontece na Índia. Nesta cultura até as pessoas pobres contribuem. Todos os sadhus viviam aqui, não havia nenhum local que distribuísse comida, mas eles vinham até aqui porque podiam aprender uns com os outros. Foi assim que tudo começou. Queriam aprender e vinham para Rishikesh. Mais ninguém vivia aqui e eles ajudavam-se mutuamente. Uma pessoa sabia gramática, outra sabia Vedanta e assim se aprendia. Os professores de gramática ensinar-te-ão gramática, os de Vedanta ensinar-te-ão Vedanta. Um gramático vai querer aprender Vedanta. Um professor de Vedanta também sabe gramática mas não vai ensinar isso, porque seria uma perda de tempo para ele. Ele guiar-te-á “por favor, vai até lá e aprende com outra pessoa”. Eles especializavam-se, por isso o professor de gramática vinha aprender com o professor de Vedanta e assim entreajudavam-se. Havia sempre alguém que sabia um pouco de gramática para ensinar aos principiantes e fá-lo-ia. Assim eles vinham até aqui e depois iam às aldeias nas montanhas pedir comida e as pessoas davam. Sem qualquer problema. Faziam namaskar e davam. Shrada, shradaya deyam, ashradaya deyam. Então, nesta tradição, danam é muito importante – dar sem qualquer lamento, sem quaisquer reservas.
3. Temos visto algumas pessoas ficarem demasiado egocêntricas ao longo da sua vida espiritual. Qual é a importância da solidariedade para aqueles que estão comprometidos com Moksha?
Se não tiveres compaixão, Moskha não existe. Bhutadaya, isto significa que tens de teradvesta sarva bhutanam maitra karunayeva. Tem de haver Karuna – compaixão. Maitra, é aquele que tem amizade, que não tem ódio em relação a ninguém. Advesta sarva butanam maitra karunayeva. Logo, não existe caminho para o crescimento espiritual sem compaixão. Daya é compaixão. Olha para o meu nome – Dayananda. Daya é uma coisa muito importante, é compaixão. Porque valorizam Daya o nome é dado. Não sou o único Dayananda, há muitos. Um deles é um professor, que ficou bem conhecido por ter fundado uma grande organização – Arya Samaj. Ainda hoje sou confundido com essa pessoa. Recebo cartas de recomendação para uma escola, a DAV, que pertence à Arya Samaj. Pensam que sou aquele Dayananda e mandam-me cartas de recomendação, não fazem ideia. Há tantos Dayanandas por aqui que eu pus Saraswati. Saraswati é um título. Não preciso de ter um nome longo, Swami Dayananda Saraswati, no computador o nome nunca aparece na totalidade, escrevem Swami D. Saraswati ou Swami D. Isto é muito comum, há muitos Dayanandas em Rishikesh. Então, o que eu quero dizer é que a palavra Daya é muito valiosa, muito importante – bhutadaya. Karuna é outra palavra importante. Assim, tu cresces enquanto pessoa na direcção de Moksha através de Daya.
4. Como é que as pessoas devem ajudar, local ou globalmente?
Tens de descobrir. Sabes, num país como Portugal existe alguma previdência social, o governo toma conta disso. Logo, individualmente, não é necessária muita ajuda, mas muita gente precisa que ouçam as suas histórias. Assim sendo, podemos ouvi-las, falar com elas, isso é uma grande ajuda. Sem qualquer terapia, deixando-as apenas falar. Não devemos nunca fazer terapia, para fazê-lo temos de ser profissionais e cobrar. Cobrar faz parte da terapia, se é paga a terapia funciona. Se pagarem compreendem que estão perante um profissional e começam a falar, porque estão a pagar (risos). Vão falar e falar e falar, sem parar. Se não pagarem não falam. Neste caso é diferente, apenas oferecemos os nossos ouvidos, isso é uma grande ajuda. Instrução de crianças também é uma boa ajuda. Assim, há sempre trabalho que pode ser feito, toda a gente pode fazer qualquer coisa.
Em Novembro do ano 2000 Swami Dayananda Saraswati fundou o movimento All India Movement (AIM) for Seva, com o objectivo de instituir uma mudança entre a população indiana, incitando-a a cuidar daqueles que mais precisam. A palavra “seva”, significa literalmente servir com respeito, indicando a própria meta desta organização – construir uma sociedade onde as pessoas cuidem umas das outras.
Se estiver interessado em saber mais acerca do AIM for SEVA ou em fazer um donativo visite o site: www.aimforsevaindia.org
Rishikesh – Março de 2009
[1] O Sama Veda é cantado desta forma, a cada passo, a sílaba “au” é repetida.
[2] Respeito, confiança.
[3] Ritual em que é oferecida e servida comida aos sadhus.
[4] Saudação
[5] Estudantes
por casa-ganapati | Mar 9, 2021 | Blog
“Quando Pattabhi Jois ensinava acredito que estava tocado por algum tipo de graça. Era uma totalidade, uma presença.”
Tomas Zorzo pertence àquela geração de praticantes que se encontrou com Pattabhi Jois no tempo em que Mysore ainda não tinha sido invadida, no tempo em que o yoga ainda não estava na moda. Quando conheceu Guruji, na sala estava apenas ele e um casal australiano. Naquele tempo, Tomas nem a sequência da saudação ao sol conhecia e muito menos sabia o que era a 1ª série. Hoje, é um dos professores mais respeitados dessa geração, destacando-se pela sua compassividade e entusiasmo, qualidades sempre presentes quando ensina. Na sua segunda visita à Quinta das Águias conversamos com Tomas Zorzo sobre Pattabhi Jois, as vantagens do Ashtanga Vinyasa Yoga e a meditação.
Como te encontraste com o yoga?
Foi na minha adolescência, numa crise pessoal que tive. Casualmente chegou-me às mãos um livro de yoga, de Swami Vishnudevananda. Tinha eu 18 anos e estava num estado de crise de adolescência muito forte. A verdade é que já tinha começado a praticar aos 14 anos, mas depressa desisti. Entretanto, na mesma altura em que li o livro de Swami Vishnudevananda, arranjei um outro livro e comecei a praticar sozinho todas as manhãs. Percebi que me sentia muito bem e que o yoga me estava a curar daquela crise.
E como surgiu o Ashtanga Vinyasa Yoga?
No yoga quanto mais praticas mais fome tens. Eu tinha visto um livro, que se chamava “Pranayama” de André Van Lysebeth, que tinha uma foto do Pattabhi Jois a ensinar pranayama. Aquela fotografia teve um impacto muito forte em mim, era muito autêntica. Então, fiz a minha primeira viagem à Índia. Em Rishikesh conheci um rapaz holandês que me falou de Pattabhi Jois. Disse-me que o tinha conhecido, que era um bom professor, co-discílpulo de Iyengar, e recomendou-mo. Nesse ano, 1983, não o vi, mas dois anos depois fui encontrá-lo.
Como foi aprender com Pathabi Jois naquela altura?
Eu cheguei muito doente com uma desenteria. Tinha ido ao hospital e tinham-me dado 50 pastilhas de cores diferentes envoltas em papel de jornal. (risos) Estava mesmo mal, vomitava, tinha diarreia… Cheguei a Mysore e a primeira coisa que o Guruji me disse foi “deita fora todas essas pastilhas, com a prática de yoga vais limpar tudo, volta amanhã às 6 horas”. Lá fui eu e o impacto que senti foi muito forte. Primeiro, porque no yoga que eu tinha praticado antes ninguém me ajustava. Depois, eu não sabia nada de ashtanga yoga, e o Guruji em cada postura tinha de me ajudar. Éramos apenas 3 estudantes, eu e um casal australiano que já sabia bastante. Graham, inclusivamente, já estava na segunda série. Comecei a praticar e era curioso que chegava muito mal às aulas, por causa da desinteria, mas cada dia que saía estava melhor. Sentia o poder da prática e a energia curativa das suas mãos, dos seus ajustes, a forma em que ele me colocava. Durante um mês ele esteve literalmente em cima de mim o tempo todo, em todas as posturas.
O que te recordas da personalidade de Pattabhi Jois quando começaste a aprender com ele?
Recordo a sua energia, a sua força. A primeira vez que o encontramos é como um pai muito carinhoso, a segunda, é como um pai autoritário. Na segunda vez que lá fui cheguei com muito ego e vontade de show-off, porque já tinha praticado, porque era muito flexível e porque já fazia a segunda série. Ele tratou-me muito mal. Chamava-me bad men (risos) “You do bad men….”
O que foi mudando em Pattabhi Jois ao longo dos anos?
Ele continuou a ser a mesma pessoa até morrer.Quando ensinava acredito que estava tocado por algum tipo de graça, era uma totalidade, uma presença. Fora da sala podias ter uma relação muito afectiva com ele, mas na sala ele era como um juíz que te via por dentro e que julgava a tua acção: de onde a fazias, se havia competividade, se havia uma atitude adequada na prática…
Se Pattabhi Jois combatia essa competitividade, porque assistimos a tanta entre os praticantes de Ashtanga Yoga?
O que ele fazia era estimular a energia, no sentido de intenção de progresso. Ele estimulava e via quando uma pessoa se esforçava por progredir. Isso era positivo. Mas quando havia ego envolto, orgulho, show-off, ele acabava com isso. O ego para ser superado tem de ser visto, creio que Guruji é um mestre espiritual, no sentido em que nos fazia desenvolver a energia e quando isso acontecia era fácil ver o ego aparecer. Quando tens muita energia, quando tens êxito, a sensação “I’m the best” vem e comparas. O problema é que nós ocidentais baseamos o progresso na competitividade e eu creio que isso é um erro. Os indianos não tinham isto. Guruji acabava com isto. Pelo menos fez isso comigo. Naquela época eu vi como ele tornava as pessoas humildes. Tenho recordações incríveis de pessoas que tinham a 4ª série quase completa e que lhe pediam os certificados e ele não dava, no entanto dava a pessoas que haviam terminado com mais dificuldade a 3ª série e a sua prática não era tão bonita e tão boa desde fora.
Na tua opinião quais são as vantagens do Ashtanga Vinyasa Yoga?
Não creio que seja bom compará-lo com nada, com nenhum outro sistema. Creio que é positivo se te faz bem a ti, se é ensinado por um professor adequado e se satisfaz as tuas necessidades. Se uma pessoa nunca fez nada de exercício, se tem problemas físicos e se já não é nova, eu recomendaria que começasse com uma prática mais moderada. Por outro lado, o ashtanga também pode ser adaptado ao indivíduo. Eu vi o Guruji adaptar a prática. Ocorre que a estrutura da prática tem uma certa exigência. Até a saudação ao sol já tem uma certa exigência para muita gente que não consegue saltar ou arquear as costas. Agora quando é praticado adequadamente, existe um sentido de desintoxicação e purificação que se produz. O efeito sobre a saúde é muito claro. Acho que o ashtanga é muito adequado para gente jovem, que está em processo expansivo.
Tu que valorizas tanto a meditação acreditas que a prática de ashtanga deveria ser combinada com a prática de meditação?
Se formos ortodoxos Guruji dizia “Practice of ásana and pranayama is very dificult. Meditation is very easy”. Com isto ele quer dizer que na prática de ásana é preciso pôr esforço e dedicação, assim como no pranayma. O resultado, fruto da purificação gerada pelo ásana e pelo pranayama, executados com atenção, provoca um estado de limpeza espiritual, cujo resultado, por sua vez, é um estado contemplativo. Por isso Guruji diz que a meditação é fácil, por ser o resultado da prática de ásana.
Eu, pessoalmente, penso que aplicar elementos de meditação na prática a torna mais completa. O efeito de pararmos e sentirmos é muito terapêutico. Dedicar-lhe meia hora, indepentemente da técnica meditativa que utilizes (podes fazer mantra, técnicas respiratórias, budistas, cristãs,…), depende daquilo que te atrai espiritualmente, mas o facto de parar, reflectir dá muito sentido à vida e à prática e ajuda-nos também a desenvolver uma prática muito mais consciente. Os ásanas ajudam a meditação e a meditação ajuda a executar os ásanas com mais consciência.
Achas que agora que o Guruji não está mais entre nós a prática de Asthanga Vinyasa Yoga mudará?
Sharath está aí e penso que haverá sempre uma escola ortodoxa que continuará a ensinar como Guruji ensinava, o que é bom. Haverá também pesssoas que adaptarão e mudarão a prática. Na minha opinião, se alguma coisa mudar, o que eu quero é que a pessoa que muda saiba o porquê de estar a mudar, qual o propósito. Se se fazem modificações, porque são feitas? Isto é muito sério. Perceber porque se fazem as coisas, o que se procura, qual o propósito.
Aquilo que tu pessoalmente procuras hoje é o mesmo que procuravas aos 25 anos, quando começaste a praticar ashtanga?
Em termos absolutos sim. Porque aquilo que buscava era um estado de plenitude e de paz. Esta aspiração interna continua a mover-me. Mas acontece que os instrumentos mudam, como era muito jovem naquela altura foquei-me nos ásanas, que eram aquilo que me atraía. Estava seduzido pela execução do ásana, por desenvolver mais flexibilidade e avançar na série. Com o tempo começas a procurar outras coisas com a prática do yoga, o aspecto espiritual e filosófico. Acima de tudo, eu vejo a prática de ásanas como a base que mantém a mente estável, o corpo são. O mesmo em relação ao pranayama. Mas logo há que dar um sentido a tudo isto. Isso vem com a maturidade e depois aprende-se a aplicá-lo na vida. O importante é que toda esta filosofia não seja apenas um conjunto de conceitos, mas que saibas como aplicá-la à tua vida. Como aplicas ahimsa na tua vida, como aplicas Mytra, Karuna, amizade, compaixão, a equanimidade, a alegria… Como aplicar tudo isto na vida? Como reduzir também os kleshas, as impurezas internas, como o egoísmo, a aversão, o medo o desejo, tudo o que te frustra na vida. Assim, já tens uma dimensão mais profunda da prática de yoga, mais completa, mais integradora.
É a segunda vez que vens à Quinta das Águias, o que achas dos praticantes que tens ensinado aqui?
É um prazer muito grande estar aqui. Sinto que nos une o mesmo espírito. Tenho de agradecer as estes grupos o entusiasmo e a energia de que dispõem. Estamos todos no mesmo barco e hoje remamos mais um pouco todos juntos mais, o que é bonito.
por casa-ganapati | Mar 9, 2021 | Blog, Destaque
“Fiquei a pensar – o que traz a felicidade a alguém?”
No passado mês de Julho, Glória Arieira, que me atrevo a chamar de voz do Vedanta em português, esteve pela primeira vez em Portugal para um retiro na Quinta das Águias, dedicado ao II capítulo da Bhagavad Gita. Foi com enorme prazer que recebemos esta grande professora e que ouvimos a sua forma apaixonada de ensinar. Durante esta estadia houve ainda tempo e paciência, da parte da Glória, claro está, para responder a esta longa entrevista que agora publicamos.
A Glória despertou para este ensinamento muito cedo, com apenas 19 anos. O que buscava nessa altura?
Com 19 anos eu já tinha morado muito tempo fora do Brasil, nos EUA, onde fui pela primeira vez tinha 6,7 anos. Já tinha passado 3 meses a viajar pela Europa, tinha dinheiro suficiente para fazer o que quisesse e não me faltava nada. No entanto, não conseguia dizer que estava satisfeita. Faltava-me alguma coisa, mas eu nem sabia o que era.
Um dia aconteceu uma situação interessante. Eu tinha 17 anos, estava nos EUA, e encontrei um homem mexicano que veio falar comigo numa loja. Ele dizia ter 3 desejos na vida e que tinha a certeza que se os satisfizesse seria uma pessoa feliz e completa: ele queria, durante a sua vida, morar nos EUA, conhecer o Brasil e ir à Europa. Eu fiquei a pensar: eu nasci no Brasil, estou nos EUA, tenho viagem marcada para a Europa e não me sinto a pessoa mais feliz do mundo. Então, o que traz a felicidade a alguém? Definitivamente, este homem acha que vai ser feliz, mas eu estou numa condição que ele desejaria e não estou feliz! A partir desse momento comecei a pensar: o que faz alguém feliz? Pensei muito sobre qual seria o significado da vida. Para que estamos aqui? Se existe uma razão para esta vida será que estou a perder o meu tempo, ou estou a fazer o que tenho de fazer? Isto marcou o início de uma busca sobre qual o objectivo da vida.
Então, voltei para o Brasil e, prestes a fazer 18 anos, fui para a Europa. O meu pai deu-me uma passagem para a Alemanha, onde tinha primos, e algum dinheiro para eu destinar como quisesse, ou para viajar ou para fazer compras. O que pensei logo foi: tenho de viajar, visitar o máximo de coisas possível e quem sabe numa destas viagens encontro a minha resposta. Viajei muito e foi muito impactante. Fui para Berlim Ocidental e vi as pessoas verdadeiramente felizes, porque viviam o dia presente, sabendo que se houvesse algum problema na Alemnha Oriental elas estavam bem no meio. Viviam também com satisfação, porque o muro não tinha passado no meio das suas casas e tinham ficado do lado livre. Isto para mim foi um ensinamento de vida – viver aquilo que se tem e não projectar o futuro. Estas coisas fizeram-me pensar muito sobre a vida, o objectivo da vida, como aproveitar a vida. Comecei então a procurar essas respostas na filosofia, fazendo diversos estudos, no budismo zen, comecei a praticar yoga, tornei-me vegetariana, fazia meditação e pranayama de manhã cedo no alto da montanha, encontrei uma pessoa que buscava o mesmo que eu e casei-me. Mas tudo o que aconteceram foram experiências, nada mais. Estava realmente desanimada, não sabia mais o que fazer, tentei isolar-me na Patagónia mas nem cheguei até lá, foi então que conheci o Swami Chinmayananda que, numa palestra apenas, falou de tantas coisas que respondiam à minha busca. Ele disse que as pessoas são como flores e que quando verdadeiramente amadurecem abrem-se com toda a sua beleza e perfume, mas que tinham de chegar primeiro a este ponto de amudericmento e de beleza e para lá chegarem precisavam de um jardineiro capaz, de um mestre ou de um professor que as fizesse exteriorizar todo o seu potencial. Foi uma palestra simples mas tocou-me. Foi aí que comecei a interessar-me por este ensinamento e acabei por ir para a Índia, onde conheci o Swami Dayananda. Quando o vi, percebi que não o estava a conhecer pela primeira vez, que já vínhamos de outras datas, vinculei-me a ele e assim estou até agora.
Na primeira aula que fez na Índia com o Swami Dayananda percebeu de imediato que a suas respostas estavam ali?
Quando ouvi a palestra do Swami Chinmayananda no Brasil, vi logo que naquele conhecimento estava a minha resposta e quando conheci o Swami Dayananda vi que ali estava a pessoa com quem ia aprender. Não me lembro especificamente das primeiras aulas, mas lembro-me claramente destes dois momentos – um em que vi o Swami Chinmayananda e percebi que era aquilo e o outro em que vi o Swami Dayananda e soube que ele era a pessoa que me ensinaria.
Como é que a sua família viu a decisão de ficar a estudar na Índia?
Eu já me tinha casado muito cedo, o que na visão deles já tinham sido uma maluquice, ir para a Índia era só uma segunda maluquice. Eu já me tinha casado, já me tinha tornado vegetariana, já praticava yoga, então foi só mais uma coisa. Os meus pais têm uma filosofia de respeito pelos valores e pelas escolhas dos filhos, pelo que foi mais ou menos tranquilo. Depois quando eu estava mesmo a morar na Índia eles foram até lá ver como eu estava e conhecer o ashram. As minhas duas avós é que realmente reagiram. A minha avó materna perguntou porque é que ia para um mosteiro na Índia se existiam mosteiros no Brasil e a minha avó paterna disse que na Índia eu acabaria por me tornar uma escrava branca. Ficaram completamente horrorizadas, mas não tinham como não aceitar.
Como foram esses primeiros tempos de Índia?
O primeiro ano e meio foi muito difícil, porque eu cheguei já o curso ia a meio e não queriam aceitar-me. Como o Swami Chinmayananda insistiu eu fiquei. Tive algumas dificuldades com umas americanas que estavam lá a estudar e entendi muito pouco porque as aulas já estavam muito avançadas. Foi muito difícil.
Alguma vez pensou em desistir e voltar para o Brasil?
Não, nunca pensei nisso. Apesar das dificuldades eu queria ficar e prometi fazer o que fosse preciso para isso. Quando o curso acabou pedi ao Swamiji para me deixar ficar, ele não queria deixar porque a toda a gente queria o mesmo. Então ele propôs-me conhecer a Índia, fez uns contactos com conhecidos, arranjou-nos um condutor, um carro e casas de famílias que nos receberam, isto durante 10 meses. Durante esse tempo acompanhámos também o Swamiji até aos locais onde ele ia fazer palestras às quais assistíamos. Foi assim que tive a oportunidade de conhceer as pessoas, a cultura e o modo de vida indiano.
A via da renúncia foi alguma vez uma hipótese para si?
Não, nunca pensei em renúncia. Os renunciantes nunca me encantaram. Sempre dei valor a uma vida simples e tranquila, mas eu também vivia isso, pelo que nunca tive esse desejo.
De que forma é que esta tradição afectou o seu estilo de vida?
Depois dos 10 meses em que viajei com o Swamiji iniciei o outro curso, que já foi bem mais fácil, de uma forma geral. Comecei desde o início, aprendi muito canto védico de que eu gosto muito e a minha vida era aquela vida do ashram. Dormíamos em quartos individuais, estudávamos sânscrito e Vedanta. Neste segundo curso estabeleci um estilo de vida que mantive mesmo depois de regressar ao Brasil. Acordava cedo, tomava banho, fazia meditação e a minha vida inteira foi como a vida do ashram. Mesmo casada e com filhos nunca deixei de fazer estas coisas – acordar cedo, fazer meditação, fazer cânticos, estudar, dar aulas. A minha vida inteira tem sido assim.
Na sua opinião é possível viver de acordo com este ensinamento durante toda a vida sem a sua parte, digamos, mais religiosa e ritualística?
Não é obrigatório juntar as duas coisas, mas à medida que vamos tendo uma apreciação de Ísvara, a relação com ele, de forma devocional digamos assim, torna-se uma coisa natural. Eu identifiquei-me com o aspecto religioso do hinduísamo que está nos Vedas. Quando parti para a Índia nunca pensei em hinduísmo, na verdade, nunca pensei em religião. Para mim era um conhecimento, uma filosofia, mas à medida que fui descobrindo Ísvara fui-me identificando com isso. Não é necessária a parte religiosa, mas alguma relação com Ísvara é importante, na forma de japa, por exemplo, isso é importante.
Quanto deste ensinamento se refletiu na educação que passou para os seus filhos?
Bem, na sequência da resposta anterior, a parte religiosa não é importante no sentido formal de seguir o hinduísmo, mas é importante ter um conceito de Deus, uma relação com Deus. Então eu pensei que não ia formalmente impor a religião hindu aos meus filhos, mas eles sempre me viram fazer puja, cânticos, bhajans e festividades no meu centro de estudos. Eles iam e participavam. Dentro de casa não se comia carne, tiravam-se os sapatos, sempre recebíamos Swamis, eles foram pequenos para o ashram do Swamiji nos EUA para participarem de um programa para crianças, ensinei-os a fazer japa… Os meus filhos tiveram uma exposição a isto, mas deixei que fossem eles a escolher. Fiz um ritual de conversão para o hinduísmo e a minha filha também quis fazer, mas os meus outros dois filhos não, por exemplo.
Chegou a levá-los para a Índia alguma vez?
Há dois anos atrás o meu filho mais velho foi comigo. Eu queria que ele fosse comigo a um templo de Venkatesha no sul da Índia. Foi um templo ao qual eu queria ter ido desde que ouvi falar dele mas nunca tinha conseguido ir. Ele adorou. Até porque, como ele diz, sempre teve uma exposição à vida indiana, aos indianos, aos Swamis que eram os meus amigos, então conhecer tudo aquilo foi importante para ele.
Quando regressou ao Brasil depois da Índia começou logo a ensinar?
Voltei da Índia, tal como fui, de barco. Era um navio cargueiro que saía do Japão, e só cheguei ao Brasil em Setembro. Em Dezembro o Swamiji iria lá então só tivémos aqueles meses para organizar a vinda dele. Ele veio e ficou cerca de 15 dias. No final da palestra ele anunciou que em Janeiro começariam as minhas aulas, então não tive escolha e comecei (risos). Comecei a dar aulas em escolas de yoga à noite e depois em casa. Na primeira aula acho que tive uns 6 alunos (risos).
Sempre soube que ensinaria?
Quando fui para a Índia não tinha pensado nisso de maneira nenhuma, fui por mim. Mas desde cedo percebi que tinha um jeito para ensinar, desde nova tinha muita facilidade para alfabetizar adultos. Enquanto estava no ashram, durante o segundo curso, o Swamiji pediu-me também para ajudar umas pessoas que não estavam a compreender as aulas, então depois da aula dele eu dava a mesma aula para essas pessoas. Tudo começou ali mesmo, eu nem sabia se estava a ensinar bem… Mas até hoje uma dessas senhoras que eu ensinava, do Canadá, manda-me todos os anos um cartão de Natal, agradecendo e dizendo que as notas que tirou na minha aula a acompanham até hoje e que por causa delas dá aulas ainda hoje. Mas quando cheguei ao Brasil tive muitas dificuldades porque tinha aprendido tudo em inglês, tinha 25 anos dos quais mais de 9 tinham sido fora do Brasil, então não conseguia ensinar em português e tive muita dificuldade. Depois fui traduzinho os termos todos para português e fui traduzindo palestras do Swamiji para escolher os termos em português. Muitos dos termos que uso hoje nas aulas parei e pensei bem sobre eles.
Como é manter uma vida simples e uma paz interior numa cidade como o Rio de Janeiro?
Para mim não é difícil. Eu poderia viver em qualquer lugar, mas uma vez que falo português acho que a minha obrigação é estar aqui e ensinar em português as pessoas que, como eu, querem aprender. Ficar na Índia teria sido fácil de mais para mim. Continuar a levar aquela vida simples no ashram, estudar, isso não era o desafio. O desafio era voltar e começar a ensinar, podia até nem ter dado certo mas eu tinha de tentar.
por casa-ganapati | Mar 8, 2021 | Blog, Destaque
Nos dias 11 e 12 de Outubro, Swami Dayananda Saraswati veio encher de luz a Quinta das Águias e o coração de quem teve a oportunidade de o conhecer. Durante dois dias, Swamiji partilhou a sua visão clara sobre o ensinamento e ainda respondeu a algumas perguntas que lhe colocámos.
- Como e quando entendeu que podia conseguir Moskha através do estudo das Escrituras?
Primeiro entendemos que existe Moksha, para ser conquistada aqui, nesta vida. Depois entedemos que Moksha é uma compreensão. O que é o quê, a realidade? Esta realidade é o que é discutido por estes livros, que chamamos as escrituras, os livros espirituais, os livros de origem, os Vedas, as Upanishads. Chamamos-lhe Vedanta. E depois existem os livros de suporte, como a Gita e os demais.
Hoje em dia, as pessoas apresentam-no como um conhecimento intelectual, um conhecimento indirecto, que temos de fazer directo através da meditação, etc… Isso é o que ouvimos habitualmente.
Então, quando vamos mais fundo na questão percebemos que não existe conhecimento indirecto, porque estamos a falar de nós mesmos. Eu não sou conhecimento indirecto. Eu sou uma pessoa auto-evidente, por isso o conhecimento tem de ser directo, não pode ser indirecto. Se é assim, o professor também tem de ter presente esse conhecimento directo. Isso levou-me algum tempo a perceber, porque eu percebia a insuficência nas escrituras. A forma como é apresentada é insuficiente, eu percebi-a como sendo insuficiente. Então tive um professor e, ao ouvi-lo, percebi que o método de ensino é tão importante quanto o ensinamento em si. É um método de ensino, e o método é de tal forma que as palavras têm de ser usadas para fazer-te ver quem tu és. É, por isso, um tipo diferente de ensinamento e perceber isso levou algum tempo…
2. Quando é que decidiu renunciar a tudo para se tornar um sannyasi? Que idade tinha nessa altura?
Tinha 32. Comecei a levar isto muito a sério em 1952 e em 57 desisti do meu trabalho, tinha apenas 27 anos. Era jornalista e o meu jornalismo foi útil porque quando me juntei ao meu professor original, ele tinha uma organização, que editava uma revista e livros e eu comecei a editá-los. Portanto, foi útil e as minhas habilidades também foram úteis. No processo aprendi muito e cresci. Depois percebi as limitações no ensinamento e tive de procurar uma solução, de novo procurar, é assim que é…
3.Qual é a sua opinião sobre Hatha Yoga, a prática de asana, pranayama e meditação?
Hatha yoga é asana e pranayama. No Hatha Yoga explicam-se quais são os asanas. O yoga de Patanjali não explica qualquer asana. Só o Hatha Yoga explica os asanas. O livro Hatha Yoga Pradípika explica tudo isso. O que é swastikasana, o que é sidhasana, o que é sarvangasana, o que é shirshasana. Encontramos nesses textos todos eles explicados. Os asanas são muito bons, porque nos ajudam a descobrir o amor-próprio. No princípio começamos a cuidar do corpo, na aeróbica também se cuida do corpo, mas o objectivo é tentar queimar calorias. Na aeróbica, com o seu 1,2,3,4, durante uma hora só se queima peso do corpo, só se quer queimar esse peso extra.
Aqui, no Hatha Yoga, come-se apropriadamente, não se come demais. Mantém-se o corpo saudável, e para isso servem os asanas. Não é sequer exercício. É um método de se manter saudável, assim como o pranayama. É possível curar muitas doenças através do pranayama. Por isso, asana e pranayama são óptimos.
Como eles próprios ensinam, a meditação é importante. É muito importante porque te ajuda a ser tu mesmo e ajuda-te a descobrir a tua conexão com o todo, se for adequada. Meditação é uma palavra genérica. O que se faz na meditação é muito importante, por isso a meditação clássica é algo que te conecta com Íshvara, isso é muito, muito importante.
E assim, tudo isto é útil para entender o que o ensinamento é. Repara que existem dois níveis. Tenho de olhar para mim mesmo e perceber que sou o todo. Não é fácil, sabes? É uma reorientação. A orientação é que sou insignificante e a reorientação é que sou o único significante, nada é mais significante. A tudo o resto empresto vida, a tudo o resto empresto realidade, então é uma coisa muito especial e isso requer preparação. E a preparação é asana, pranayama, dharana, dhyana, todos estes são úteis.
4. Li um comentário seu numa entrevista que deu ao Andrew Cohen* em que dizia o seguinte: “não há nada neste mundo mais tolo do que a experiência. De facto, foi a experiência que nos destruiu”. Pode explicar esta frase?
É verdade. Foi o que eu disse. Isso foi a única coisa que ele transcreveu tal qual aconteceu, depois disso já não.
Percebeste o que eu disse? Ele não. Uma experiência nunca nos vai relevar o que é, toda a experiência que temos é Brahman, é o ilimitado Brahman. Uma vez que dizemos que Brahman é eterno, ele não se pode esconder do tempo e Brahman é tudo, pelo que não nos pode manter afastados dele, nem tão pouco podemos afastarmo-nos dele. Então tudo o que é, é Brahman em qualquer experiência, seja triste ou abençoada, tudo é Brahman. Se tudo é Brahman temos de o saber.
A experiência é Brahman, a consciência é Brahman, toda a experiência é consciência e ela é Brahman, e porque é que não o sabemos? Se a experiência pudesse dizer-mo, eu deveria ser iluminado. Ele não entendeu isto! Eu também lhe disse isto, mas ele não percebeu. Ele tem um paradigma, e ele quer experimentar. A experiência de Brahman não é alguma coisa do coração. Todos eles pensam que é alguma coisa no coração que temos de experimentar e da qual depois temos de sair. No calor da meditação tu vais experimentar Brahman, (risos), como se fosse queijo derretido. Imagina que fazes uma tosta de queijo e no meio das duas fatias de pão pões uma camada de queijo. Então, quando pões a tostar, o queijo começa a derreter e a transbordar, consegues ver o queijo a sair por todos os lados. Isto é exactamente o que acontece no calor da meditação, atman derrete-se, transborda e é o êxtase! (risos)… Paradigma. Ele não entendeu nada disto, e naquilo que escreveu ridicularizou tudo. Ele não teve o cuidado de confirmar se tinha ou não entendido. Ele tinha de ter confirmado. É um tema que pede uma escrita responsável e ele escreveu de forma irresponsável.
5. Como podemos entender a não-dualidade (advaita) e, ao mesmo tempo, sermos capazes de criar um distanciamento (uma não-identificação) entre nós mesmos e as nossas emoções?
Não precisamos criar um distanciamento. Uma coisa é satyam e a outra é mithya. Quando a não-dualidade é entendida, aquilo que é auto-evidente é não-dual. Tudo o resto é mithya, logo é não-dual. Se existem cem jarros mas compreendemos que só há barro, isto é não-dual. Há apenas um barro em relação aos jarros. Cem jarros e um barro. Contamos barro, há apenas um barro. Então um barro e cem jarros é o quê? Não-dual, não há soma. Se um jarro entendeu que é barro, então é livre. O jarro é mithyam, é aparente.
Então, se analisarmos, mesmo no nível de Íshvara, se Íshvara é tudo na forma de ordem, então as emoções também estão na forma de ordem e eu posso ter emoções, eu dou as boas-vindas às emoções. Vou até ao nível de Íshvara e vejo-as como ordem, logo são aceitáveis. A distância parece muito simples. Por isso eu disse que o devoto é aquele que descobre a relação entre ele, o indivíduo, e o todo, aí ele torna-se um devoto. E este devoto desempenha o papel de filha, de irmão, de irmã,… O papel de devoto está lá em todos os papéis, e existe uma distância entre os papéis e o devoto. O papel é o devoto, o devoto não é o papel. Esta é a distância. B é A, A não é B.
6. Como devemos lidar com as nossas emoções?
Sabes, como disse, lidamos com as nossas emoções como sendo válidas. Lidamos com todas as emoções objectivamente. São todas emoções válidas. Qualquer emoção é válida. Está ali, porque tem de estar ali. Existe uma razão para isso. Assim, não te julgas baseado nas tuas emoções, não fazes qualquer julgamento. Estas emoções são reais, elas têm um passado, uma relação causa-efeito e, por isso, aceitas as emoções e fazes aparecer Íshvara. Assim, recebes melhor a Ordem que é Íshvara. A única coisa que tens de dizer é que é a ordem de Íshvara. As emoções estão aí por causa da ordem que é Íshvara. Acolhes as emoções mas nunca vitimizas quem quer que seja. Na raiva, em qualquer emoção, ninguém é tua vítima, nem tu és a vítima. Assimilas isso, se não o fazes tornas-te vítima. Assimilas e então existe um processo. O primeiro é chamado dama e o segundo shama. Dama é não vitimizar e shama é o processo que acontece assimilando, escrevendo, falando com alguém. Escrever é melhor, porque se falas tens de ser cuidadoso com as palavras. Escrever é melhor porque podes dizer o que quiseres, em verdadeiro português. Escreves, escreves, escreves, e depois destróis. Algumas pessoas guardam, guardam como se fosse uma escritura. A destruição faz parte do processo, tens de destruir. Isto é um processo.
7.O que é conhecimento revelado – a origem dos Vedas? Revelado como, por quem, quando?
Conhecimento revelado é epistemológico. É uma questão de pramana. Os meios de conhecimento que temos não objectificam, nem têm acesso a determinadas coisas, como por exemplo, punya e adrishta. Punya é o resultado de um bom karma, uma oração, um grande ritual ou caridade. Tudo isto trás punya. Bom, nós não vemos punya, vemos apenas o resultado de punya. Este resultado é estar no lugar certo à hora certa. Esse é o resultado de punya, e estar no sítio certo à hora errada é o resultado de papa. Imagina que estamos na estrada, que é o sítio certo para estar. O teu carro segue na estrada, no sítio certo, mas à hora errada, porque queres ocupar um lugar e outra pessoa quer ocupar o mesmo lugar, ao mesmo tempo. Então tens um acidente, o que está fora do teu controlo. Isso é papa, o resultado de papa. Papa não é pecado, papa é apenas papa. Não existe palavra em inglês [nem tão pouco em português]. Para punya também não existe palavra equivalente. Punya e papa têm de ser conhecidos por outro meio de conhecimento, e se ele existe, é o que chamamos conhecimento revelado. Isso está nos Vedas.
De forma semelhante, Atman é Brahman, a causa do mundo, Íshvara, é impossível conhecer. Porquê? Porque não está ao alcance da percepção ou inferência, tem que nos ser dito. Uma vez que nos é dito, e que está correcto, podemos remover completamente todas as objecções. O resultado é conhecimento, mas tem de ser ensinado. Aquele que conhece não pode conhecer a verdade de si mesmo, porque o conhecedor tem apenas os sentidos e a informação que chega através deles é baseada na inferência. Assim, o conhecedor pode objectivar e conhecer, por isso o que é objectivado, o que é o conhecedor e o conteúdo de ambos, é um Brahman. E como sabe ele isso? Tem de lhe ser dito.
Isto vem sendo transmitido. De quem veio primeiro, alguém o deve ter dito. Existe apenas Íshvara. Íshvara manifestou tudo e o seu conhecimento veio com isso. Em todas as culturas existem afirmações como tu és tudo, tu és o todo, tu és Íshvara. Isso é Vedanta, não precisa de ser em sânscrito. Em todas as culturas isso esteve presente. Esse é conhecimento comummente disponível, mas na índia temos uma tradição de ensino, não apenas uma afirmação, um ensinamento, mas um método de ensino. Que és o todo está em todas as escrituras e mesmo fora das escrituras estas afirmações também existem. Mesmo pessoas iliteradas produziram essas afirmações. Místicos tiveram essas experiências, pessoas literadas revelaram-nas, mas ninguém sabe o que é. Têm insights, porque o todo é percebido mas não existe método de ensino.
Este é um conhecimento revelado, revelado aos Rshis, de quem não sabemos a idade, nem o momento em que foi revelado. Revelado aos Rshis que por sua vez revelaram a outros e assim tem vindo a ser passado. Funciona, e isso é que é importante.
8. Há quem diga que “ que para nos conhecermos não é necessária qualquer aprendizagem ou conhecimento das escrituras, uma vez que nenhum homem precisa de um espelho para se ver”. Como comenta esta afirmação?
De facto, nenhum homem consegue ver a sua pópria face sem um espelho, correcto? Suponhamos que os olhos se querem ver a eles próprios, não conseguem, os olhos não se conseguem ver, precisam de um espelho. No espelho eu vejo os meus olhos. Eu vejo os meus próprios olhos através do espelho. Quando olho para um espelho o meu compromisso não é olhar para o espelho, mas olhar para mim mesmo. Na verdade, o espelho são os meus olhos. Eu vejo-me, vejo a minha cara no espelho, mas não existe qualquer dúvidade de que eu sou. Perceber isso não requer qualquer espelho ou meio de conhecimento. Eu sou. Toda a gente sabe isto. Eu sou auto-evidente. Existes ou não? Tens de responder “sim, eu sou, eu existo”. Não precisas de consultar, não precisas de ver, não precisas de ouvir, porque estás ali tu vês, ouves e por isso não precisas de nada.
Mas quem és tu? Essa é a questão. Tu és auto-evidente, mas quem és tu? Aí começam todos os problemas. Eu sou assim,sou assado, sou isto, sou aquilo, esta é a pessoa… Quem és tu? Eu sou tanto quanto este complexo corpo-mente-intelecto. E então alguém diz, “não, eu sou diferente de tudo isto”. Como é que sabes? Porque olho para todos eles. Mas então quem és tu? Ainda, quem és tu? E o que é este complexo corpo-mente-intelecto?Isto é dualidade, duas coisas diferentes. Então jagat, o mundo está aí, e a causa do mundo, Íshvaraestá aí, como vais saber isso? Para isso serve o espelho. Até para veres a tua própria cara precisas de um espelho. Para veres a realidade de ti mesmo também precisas de um espelho de palavras. É um espelho. Estás a olhar para ti próprio. É um espelho de palavras. Sabes, há frases como “para olhares para ti próprio não precisas de um espelho”… Tu precisas de um espelho, de ambos. Para olhar para a tua cara precisas de um espelho. Nem sequer consegues olhar para as tuas orelhas, nariz, bochechas, testa, cabelo… não consegues olhar para nada. Os olhos não estão posicionados para isso. Para isso há um espelho que é fornecido, para veres o espelho e veres além. Então precisas de um espelho, não só para te ver, mas para ver quem és. Para saber que sou não preciso de um espelho, mas para saber o que sou preciso de muitos espelhos. Yeah! (risos)
9. Se existe uma ordem universal, e se esta ordem é perfeita, apesar do modo como agimos no mundo, porque devemos agir de acordo com o dharma?
Porque dharma é a ordem, porque dharma é Íshvara e se eu vou contra a ordem existe uma pressão, raga-dvesha, a pressão está lá e eu cedo a essa pressão. Mas também me é dada pela ordem a capacidade de contrariar essa pressão, porque a pressão é falsa. O dharma é real, a pressão só lá está devido à minha falta de compreensão das prioridades. Se as prioridades estão claras, e para isso eu tenho budhi ( o meu intelecto) – para perceber quais são as prioridades – então posso ter/ser um sistema de suporte. Posso ir contra a pressão, conformar-me com o dharma e evitar o conflito. Quando vais contra o dharma estás sujeito ao conflito e à culpa, não podes evitá-lo, porque é a ordem. E ninguém quer sentir culpa, logo, para se livrar da culpa, para ter a satisfação de ser eu próprio, para estar alinhado com Íshvara, tenho de me conformar ao dharma. No início com algum sistema de suporte escondo-me da pressão. Depois, com mais compreensão torna-se mais fácil. Com maior compreensão as minhas prioridades mudam, é muito, muito fácil. Suponhamos que até existe alguma pressão devido a uma velha orientação, posso livrar-me disso “fingindo e fazendo”. Ao fingir como se “dharmico” eu fosse, ajo, e então “dharmico” me torno. É como nadar. Nadando, eu aprendo a nadar. Não há outra forma. Tens de nadar para a aprender a nadar, e tens de agir de acordo com o dharma para te tornares “dharmico”.
por casa-ganapati | Nov 26, 2018 | Blog
Todo o praticante de yoga sabe que há dias e dias, nenhum dia é igual ao anterior. Se às vezes acordamos com a garra de um leão, outras é preciso uma grua para nos tirar da cama, se há dias em que o corpo está bem oleado e corresponde, outros parece que gerámos ferrugem nas articulações. Há ainda aqueles dias em que mentalmente temos uma enorme vontade de fazer tudo, mas parece que de alguma forma a comunicação entre o cérebro e o corpo falha e até damos por nós a pensar “de quem é este corpo? Isto não sou eu!”.
Hoje foi um desses dias, a prática custou! E não é que seja excepcional, muitas vezes a prática custa-me, o corpo não corresponde às expectativas da mente ou vice-versa, mas seja qual for a situação invariavelmente chego à mesma conclusão: não tenho um corpo excepcional para a prática, também não tenho o pior dos corpos, mas o problema está na minha mente e chama-se disciplina (ou falta dela)!
Desde pequena nunca levei nenhuma actividade muito a sério, experimentei um pouco de tudo e acabei sempre por desistir, na verdade, foi só no yoga que encontrei uma âncora, já lá vão pelo menos 16 anos. Ainda assim, durante muito tempo pratiquei com o foco apontado para aquilo que dava prazer e não necessariamente para o que precisava, escolhi sempre o caminho mais fácil. Foi na prática de Ashtanga Yoga que encontrei o primeiro grande desafio que ainda não superei mas que vou superando aos poucos – a questão da disciplina, da rotina, da tenacidade e da resiliência. Esta prática, e ainda que possa ser adaptada, não dá muita margem para nos encostarmos ao que é confortável, porque a sequência está definida e cedo ou tarde vamos esbarrar nalguma dificuldade e das duas uma: ou mandamos tudo às urtigas, ou vamos enfrentando!
É incrível como o Yoga como que por magia nos conduz exactamente ao ponto que precisamos de trabalhar, não no tapete, ou melhor também no tapete mas acima de tudo na vida. E sem dúvida que disciplina e resiliência são qualidades que eu preciso de trazer para a minha. Assim, na prática e na vida o meu Sankalpa ( a minha resolução interior) tem sido nesse sentido, e com a prática mas sobretudo com a visão do Yoga vou caminhando diariamente para a realização do meu sankalpa, e ainda que já tenha conquistado algum terreno há dias em que não consigo evitar os passos atrás, e ainda assim está tudo bem, está tudo na ordem.
por casa-ganapati | Nov 16, 2018 | Blog
Andar de comboio na Índia é uma experiência sobre a qual podemos escrever à vontade, mas que é como ter filhos, por mais que nos contem tudo, só sabemos como é quando os temos!
Ainda assim, numa tentativa de aproximação ao assunto, vou descrever uma aventura nocturna de 12 horas em sleeper class com A/C o que, como devem imaginar, é de si um oásis no deserto!
Ainda nem embarcamos e a coisa já vai mal! Encontrar a plataforma do nosso comboio pode ser obra desenganada, em muitas, diria que a maior parte das estações ferroviárias toda a informação está em hindi, incluindo os números das plataformas! Como sempre perguntar não serve de grande coisa pois, invariavelmente, os indianos acenam com a cabeça o que nós interpretamos como um sim, mas na verdade não entenderam rigorosamente nada do que perguntámos e simplesmente fazem o que sabem melhor – acenar com a cabeça e sorrir! Se chegarmos ao comboio (certo) e ele ainda não tiver partido então a viagem tem tudo para correr bem, pelo menos o principal está feito e se for o comboio (certo) vamos em direcção ao destino desejado.
Pois bem, de bilhete na mão e bagagem às costas lá vamos em busca do nosso lugar e também aqui é sempre bom começar a rezar, fazer um mantrinha a Ganesha ou a quem nos costuma acudir, para que “por favor, o meu lugar esteja livre”. Lugar marcado para os indianos não tem grande significado e o mais provável é chegarmos ao lugar e encontrarmos a avó, o avô, o filho, a filha, os 3 netos mais o bebé recém-nascido tudo enrolado na mesma manta a dormir tranquilamente. Isto é mesmo muito frequente mas, ainda assim, convém certificarmo-nos uma vez mais, que estamos no comboio certo (pois também já aconteceu de não estarmos!) Sendo então o nosso comboio, toca de fazer toda aquela família entender que o lugar não lhes pertence, o que perante a barreira linguística misturada com o sono é uma nova empreitada!
Uma vez conquistado o nosso território, há que arranjar um buraquinho para enfiar a bagagem e tratar de encontrar o revisor para nos arranjar uns lençóis limpos, pois se foi o que nos prometeram quando comprámos o bilhete preferíamos não ter de nos deitar naqueles que a simpática família já usou. Depois, sacudimos as migalhas, fazemos a cama o melhor que se pode e finalmente parece que teremos descanso até o vizinho da cama de baixo ligar o “roncómetro”! Como viajantes experientes toca a sacar dos tampões e da venda de olhos e está tudo bem, embalados pela dança do comboio prevê-se uma noite de bom descanso. Com o equipamento adequado dorme-se mesmo bem no comboio (e agora não estou a ser irónica).
Não se dorme é tanto como esperávamos pois os indianos são da madrugada e ao primeiro sinal do sol raiar começa a levantar-se um burburinho que cedo se transforma em acesos diálogos, gargalhadas ruidosas e até aparatosas discussões entre as famílias. Começa também a espalhar-se o cheiro a chamuças e chapatis com ghee, a dhal e parantha e enquanto os homens se abastecem, elas tratam de arranjar as tranças e de escolher um novo bindi para decorarem a testa, passam pó de talco pelo corpo das crianças ensonadas e muito khol nos seus olhos para proteger da poeira! É um cenário delicioso e apesar das poucas horas de sono sabe bem ficar parado a apreciar aquilo tudo. Não tarda nada também estamos a comer o que os nossos vizinhos prontamente partilham connosco, já com uma das crianças no colo e outra pendurada ao pescoço, encantada com as selfies que não resistimos a fazer com os nossos “telefones espertos”!