Para quem não tem acesso à publcação aqui fica a entrevista com o Miguel que saiu na última edição dos Cadernos de Yoga:
Você já estudou Āyurveda, Tantra e atualmente é estudante de Vedānta, o que te levou ao Yoga e como se deu a sua trajetória dentro desse estilo de vida?
O Yoga aparece na minha vida fruto do acaso, embora hoje deva dizer, fruto do karma. Eu não era uma pessoa em busca do Yoga ou da espiritualidade. Certamente como tantos outros tinha os meus questionamentos e perguntava-me sobre o sentido da vida que as pessoas levavam. No entanto, isso nunca despoletou em mim até então qualquer busca. Na altura, por causa da Maria e de início sem grande vontade, comecei a praticar Yoga. Como muitos achei muito estranho de início, mas depois comecei a querer saber mais e estudar e percebi que ali podia encontrar as respostas para as minhas inquietações. Comecei a praticar e estudar diariamente 3 meses depois de começar e assim segue desde então. Já Lá vão 10 anos.
Comecei por praticar uma forma de Haṭha Yoga com a qual hoje não me identifico, mas que foi a minha porta de entrada e por isso tenho uma gratidão pelo meu primeiro professor. A verdade é que a determinada altura não tinha respostas para o que queria, e percebi que o foco daquele método não era o Yoga propriamente dito. Foi a minha percepção. Procurei então outras abordagens, alguém que me ensinasse mesmo Yoga. A partir dali comecei a crescer. Conheci a Claúdia Villadelprat com quem aprendo Iyengar há seis anos, depois o Dada Dhyanananda com quem por um período de tempo tive uma relação muito próxima. Ao Dada devo ter percebido o que era Bhakti e ter aprofundado a prática de meditação. Mais tarde fui para o Brasil aprender com o Pedro Kupfer. O Pedro é meu Professor, é como um irmão. Ele foi o ponto de viragem no meu caminho, clareou a minha visão do Yoga. Continuo a aprender com ele até hoje. É uma doce e generosa alma que passeia por este mundo. Pelo Pedro cheguei ao Swami Dayānanda, que é o meu Mestre, e ao Vedānta.
Eu cheguei a um momento em que, fruto de circunstâncias pessoais, percebi que existia uma limitação inerente à técnica. Aquilo que a técnica faz por nós, fez até ao momento presente, mas se no momento presente somos confrontados com alguma dificuldade não é a técnica que vai resolver o problema. Posso até parar, fazer prāṇāyāma ou meditar, mas quando abrir os olhos, o mundo continua lá fora à minha espera. Percebi então que eu precisava de olhar-me e ao mundo de forma diferente e o Vedānta foi a solução para mim.
É claro para mim, hoje, que ensinamento e prática não estavam separados na Índia, mas quando os ocidentais começaram a ir para lá não tinham acesso ao sânscrito, nem às línguas locais e portanto conseguiram trazer o mais palpável, a técnica. A verdade, no entanto, é que a técnica sem o ensinamento tem um potencial limitado.
Não há palavras que possam exprimir a gratidão que sinto por aprender ano após ano com o Swami Dayānanda e com o Swami Paramarthanda. Não há palavras para aquele que lança luz sobre a escuridão da nossa ignorância e nos liberta do sofrimento.
O Āyurveda surge no meu percurso pela mesma necessidade de encontrar uma base que me permitisse ensinar Yoga de um para um. A adequação do Yoga ao indivíduo tem tradicionalmente o suporte do Āyurveda e isso é claro nos textos de Haṭha Yoga. Por ter conhecido o Atreya Smith conheci o David Frawley e comecei a aprender com ele. Também por causa do Atreya conheci a Ganga Decoux (antes conhecida como Mira). A Ganga foi discípula e mulher do Papaji. Visito-a todos os anos, mais do que uma vez. Os satsangas da Ganga são uma forma de mananam e nididhyāsana sem preço. Considero-a uma luz no meu caminho também.
Com o tempo fui conhecendo outras pessoas com quem aprendi e aprendo e que se tornaram muito significativas; A Gloria Arieira que, como o Pedro Kupfer, dispensa apresentações no Brasil, é aquela clareza. É muito bom tê-la conosco.
Nos últimos anos eu e a Ana começamos a descobrir o Aṣṭāṅga Vinyāsa com o Tomás Zorzo que foi um dos estudantes mais antigos do Patabhi Jois. O Tomás tem uma simplicidade, espontaneidade e compaixão tocantes a ensinar e com ele entramos noutro universo do legado de Kṛṣṇamacharya. Por fim, uma palavra para o David Swenson com quem fizemos formação recentemente e nos abriu mais uma janela de possibilidade dentro desta tradição tão vasta e interessante que é a do Haṭha Yoga
Você também é advogado, como divide o tempo como praticante, professor e estudioso do Yoga com o ofício do direito?
Essa é uma boa pergunta! Acho que puṇyam (mérito), alguma disciplina e foco
O meu Pai já faleceu, mas também era advogado como a minha mãe também é. As leis não são novidade na família. Quando comecei a exercer e durante algum tempo tive um conflito, porque via o direito como um obstáculo à minha dedicação ao Yoga. Depois percebi que a resistência nascia da dificuldade em lidar com algumas situações com que a advocacia me confrontava. Comecei então a olhar para a advocacia como Yoga e como uma oportunidade para crescer. Hoje estou em paz com isso.
Aliás a advocacia dá-me uma coisa óptima: sustento. Isso faz com que eu nunca olhe para o que faço no Yoga como o meu ganha pão. Isso é uma coisa preciosa para mim. Ensino o que me parece importante, sem modismos, sem pressão. Eu ensino aquilo em que acredito e não aquilo que vende ou as pessoas querem.
Vejo que, pelo menos aqui em Portugal, algumas pessoas se entusiasmam com o Yoga, são praticantes dedicados e muito cedo abandonam tudo para ensinar Yoga, com a ideia de só se dedicarem a isto. O problema está em que depois passam o dia a dar aulas, perdem a prática pessoal, perdem a possibilidade de continuar a praticar com outros professores. Nem sempre o Yoga é rentável e no meio da sobrevivência perdem a capacidade financeira para poderem fazer cursos, formações e viajar para aprender. A formação no Yoga é contínua e parece-me importante levar uma vida que não o comprometa.
Sou afortunado porque trabalho no escritório que é dos meus pais e tenho muita liberdade. Liberdade para não cumprir horários, para não ter de ir ao escritório todos os dias, para passar meses fora a estudar. Devo muito à minha mãe por isso. Ela sempre me ajudou e me apoiou.
O que o levou a vir estudar Yoga no Brasil?
Eu fui para o Brasil numa altura em que sentia que precisava de fazer uma formação de novo. Nessa altura eu já conhecia o Yoga.pro há aproximadamente dois anos. Um amigo tinha-me falado no site. Ainda era aquela versão branca. Achei incrível, porque naquele site, de graça, havia mais informação, estudo e ensinamento do que em muitos livros que eu tinha encontrado e mesmo cursos de supostos mestres.
De certa forma, foi uma maluquice, ir daqui para o Brasil para aprender com uma pessoa com quem nunca tinha praticado, que não conhecia, não conhecia sequer quem tivesse praticado com ele! Lembro-me de estar no aeroporto à espera do embarque e pensar para mim. “Miguel, és completamente alucinado. Vais atravessar o oceano, só porque meteste na cabeça que aquele fulano tem alguma coisa para te ensinar.” Foi uma das melhores alucinações que tive! Tive o apoio de quem estava ao meu lado e lá fui eu.
Nessa altura não havia nenhuma formação naquele formato intensivo aqui em Portugal. E eu, de facto, queria sentar e conviver com a pessoa que me ensinava. Para mim sempre foi importante estabelecer uma relação próxima com quem aprendi. Não consigo aprender de outra forma. O Pedro ensinou-me e acolheu-me. Temos em comum uma série de coisas, não só a paixão pelo Yoga, mas acho que tivemos um crescimento semelhante de alguma forma e isso moldou algumas características comuns. Não sei se ele se revê nisto, mas é a minha percepção.
Lembro sempre com muito carinho essa primeira viagem.
Qual a diferença que você observa entre o Yoga no Brasil, em Portugal e na Índia?
A última vez que estive no Brasil foi em 2006, portanto não sei se a minha opinião terá o suporte suficiente. Nos últimos anos, vou acompanhando sobretudo pelos amigos que tenho aí.
Claramente o Yoga cresceu muito mais cedo no Brasil do que em Portugal. Isso parece-me inequívoco. Também é claro, que o Yoga se tornou muito mais rapidamente uma moda no Brasil do que cá. Quando fui para o Brasil em 2005 toda a gente dizia que praticava este Yoga, aquele Yoga. Aqui em Portugal, não havia tanto isso. Havia uma ideia mais uniforme do Yoga. As distinção era mais feita pelos professores do que por métodos. Hoje isso também já começou a mudar aqui. Tem o seu lado bom e menos bom. Sinceramente não acredito em bons e maus métodos de yoga, mas mais em bons e maus professores de Yoga. Claro que quando digo isto, logo as pessoas pensam nas coisas mais abstrusas que têm o nome de Yoga e perguntam-se se eu lhes dou o meu aval. Simplesmente não as considero Yoga.
Uma diferença clara que me parece existir entre o Yoga no Brasil e em Portugal é que cá o Yoga é mais democrático. Quero com isto dizer que está mais acessível às pessoas. Se pensarmos que o Euro é muito mais forte que o Real, (aprox. 3 vezes mais), que o nível de vida médio em Portugal é superior ao Brasil e que é mais barato praticar Yoga em Portugal do que no Brasil dá que pensar, não? Aqui, qualquer pessoa consegue praticar Yoga. Parece-me que aí não é bem assim. Pelo menos é a percepção que tenho do que vou vendo. Já vi escolas, cursos e retiros de Yoga com preços que seriam absurdos em Portugal.
Não sei se isso nasce das assimetrias sociais graves no Brasil. Uma coisa que me chocou quando fui para aí era as pessoas serem catalogadas por classes sociais e isso ser do vocabulário comum. Se é isto que está na origem de um Yoga mais elitista talvez seja de repensar. De qualquer forma, parece-me que muitos professores aí têm muita consciência desse problema e talvez daí nasçam tantas iniciativas de levar o Yoga aos menos favorecidos. Vejo muito isso no Brasil e parece-me louvável.
Definir o Yoga na Índia é uma empreitada! Ali nasceu o Yoga, há o tradicional, há o bom, há o novo e ainda assim bom e depois ali como noutros lados existem deturpações. Talvez lá mais que noutros lugares existam mais pessoas dispostas a aproveitar a inocência daqueles que vão para lá à procura do Guru. Não vale a pena ir para a Índia passear à espera de tropeçar com quem nos vá ensinar. O mais provável é sermos enganados e voltarmos desiludidos. A Índia não é o país idílico que muitos pintam. É preciso saber para o que se vai. Se isso acontecer a experiência pode ser muito enriquecedora e gratificante. Eu tive essa sorte e por isso volto todos os anos.
Se formos olhar para o Hatha Yoga na Índia, e se ele hoje em dia cresce, é porque os jovens querem tornar-se ocidentais e como nós aqui praticamos, eles também querem praticar. Se formos olhar para o ensinamento, o panorama já não é tão animador. Uma vez conversava como Swami Paramarthanda que vive em Chennai e comentava que a maior parte das pessoas que aprendiam com ele tinham mais idade e que aqui no ocidente era diferente. Ele concordou, riu e disse que ainda ia chegar o dia em que para se aprender Vedanta seria preciso ir ao Ocidente! Acho que ainda estamos longe desse dia e há muito o que aprender lá felizmente.
No Brasil, a Aliança do Yoga foi criada em maio de 2002, contrapondo-se à ameaça do Yoga ficar subordinado aos Conselhos Educação Física. A Aliança defendeu e defende a auto-regulamentação do Yoga. Você participou da criação da Aliança do Yoga em Portugal, que foi criada inspirada no modelo da Aliança do Brasil. O que levou à necessidade dessa criação?
Aqui como aí, o que levou à criação da Aliança foi a necessidade de proteger o Yoga de grupos e instituições que pensam pouco em Yoga e mais em poder, controle e lucro. É o que é, e é uma infelicidade. A tentação de deixar o Yoga cair na Tutela do desporto também existiu, mas felizmente por agora está ultrapassado.
A Aliança nasce neste contexto. Ainda estamos a dar os primeiros passos, mas muito de bom pode nascer desta iniciativa.
Vemos que o Yoga cresceu de maneira muito rápida em todo o ocidente, qual você acha que é o futuro do Yoga aí em Portugal, e em geral na Europa? Acredita que continuará esse processo de crescimento?
Acredito que o Yoga vai continuar a crescer. Se na melhor direcção ou não, não sei… Acredito que o Yoga vá chegar cada vez a mais gente. Que o Yoga pop se desenvolva cada vez mais e por aí, cada vez surjam mais e mais marcas de Yoga. Nesse crescimento, muitos vão chegar a qualquer coisa que lembre o Yoga, e isso certamente despertará alguns para saberem mais.
O verdadeiro Yoga não é para todos. Nem todos querem mokṣa. Se formos ver, a maior parte dos praticantes quer é um bom saṃsāra. Mas o Yoga está aí para mokṣa! Talvez do crescimento pop, alguns cheguem ao Yoga tradicional e também por aí o Yoga cresça. Vejo o Yoga como uma mãe generosa que dá a cada um aquilo que cada um quer. Respeito isso. Procuremos também respeitar esta mãe, sem a enxovalhar.
Na sua opinião, qual é a importância de manter o estudo dos textos do Yoga e estar em constante contato com a Tradição?
Para mim, isso é o fulcral. O Yoga nasce na tradição védica, nasce na culltura védica. A vida de Yoga , a prática de Yoga têm um propósito claro que é o de dar ao praticante a maturidade suficiente para poder entender e assimilar o ensinamento. E o que o ensinamento nos diz é que nós somos a plenitude que buscamos fora. A liberdade da sensação de que falta alguma coisa para ser finalmente completo e feliz é mokṣa – é o que o ensinamento revela. Praticar sem se expor ao ensinamento é como manter o carro sempre afinado e limpo, mas nunca o tirar da garagem. Há que dar uso ao corpo mente lapidados pela vida de Yoga. E neste contexto, esse uso é a exposição ao ensinamento para reconhecermos a nossa verdadeira Natureza. Todo o ser humano quer ser feliz e completo. Se fosse conseguir por si mesmo, sem ajuda, provavelmente teríamos mais sábios a passear no mundo.
O ensinamento muda a visão da pessoa, torna o Yoga vivo. Suponho que isto seja uma verdade dentro de qualquer tradição. Honremos o que seguimos.