“Quando Pattabhi Jois ensinava acredito que estava tocado por algum tipo de graça. Era uma totalidade, uma presença.”
Tomas Zorzo pertence àquela geração de praticantes que se encontrou com Pattabhi Jois no tempo em que Mysore ainda não tinha sido invadida, no tempo em que o yoga ainda não estava na moda. Quando conheceu Guruji, na sala estava apenas ele e um casal australiano. Naquele tempo, Tomas nem a sequência da saudação ao sol conhecia e muito menos sabia o que era a 1ª série. Hoje, é um dos professores mais respeitados dessa geração, destacando-se pela sua compassividade e entusiasmo, qualidades sempre presentes quando ensina. Na sua segunda visita à Quinta das Águias conversamos com Tomas Zorzo sobre Pattabhi Jois, as vantagens do Ashtanga Vinyasa Yoga e a meditação.
Como te encontraste com o yoga?
Foi na minha adolescência, numa crise pessoal que tive. Casualmente chegou-me às mãos um livro de yoga, de Swami Vishnudevananda. Tinha eu 18 anos e estava num estado de crise de adolescência muito forte. A verdade é que já tinha começado a praticar aos 14 anos, mas depressa desisti. Entretanto, na mesma altura em que li o livro de Swami Vishnudevananda, arranjei um outro livro e comecei a praticar sozinho todas as manhãs. Percebi que me sentia muito bem e que o yoga me estava a curar daquela crise.
E como surgiu o Ashtanga Vinyasa Yoga?
No yoga quanto mais praticas mais fome tens. Eu tinha visto um livro, que se chamava “Pranayama” de André Van Lysebeth, que tinha uma foto do Pattabhi Jois a ensinar pranayama. Aquela fotografia teve um impacto muito forte em mim, era muito autêntica. Então, fiz a minha primeira viagem à Índia. Em Rishikesh conheci um rapaz holandês que me falou de Pattabhi Jois. Disse-me que o tinha conhecido, que era um bom professor, co-discílpulo de Iyengar, e recomendou-mo. Nesse ano, 1983, não o vi, mas dois anos depois fui encontrá-lo.
Como foi aprender com Pathabi Jois naquela altura?
Eu cheguei muito doente com uma desenteria. Tinha ido ao hospital e tinham-me dado 50 pastilhas de cores diferentes envoltas em papel de jornal. (risos) Estava mesmo mal, vomitava, tinha diarreia… Cheguei a Mysore e a primeira coisa que o Guruji me disse foi “deita fora todas essas pastilhas, com a prática de yoga vais limpar tudo, volta amanhã às 6 horas”. Lá fui eu e o impacto que senti foi muito forte. Primeiro, porque no yoga que eu tinha praticado antes ninguém me ajustava. Depois, eu não sabia nada de ashtanga yoga, e o Guruji em cada postura tinha de me ajudar. Éramos apenas 3 estudantes, eu e um casal australiano que já sabia bastante. Graham, inclusivamente, já estava na segunda série. Comecei a praticar e era curioso que chegava muito mal às aulas, por causa da desinteria, mas cada dia que saía estava melhor. Sentia o poder da prática e a energia curativa das suas mãos, dos seus ajustes, a forma em que ele me colocava. Durante um mês ele esteve literalmente em cima de mim o tempo todo, em todas as posturas.
O que te recordas da personalidade de Pattabhi Jois quando começaste a aprender com ele?
Recordo a sua energia, a sua força. A primeira vez que o encontramos é como um pai muito carinhoso, a segunda, é como um pai autoritário. Na segunda vez que lá fui cheguei com muito ego e vontade de show-off, porque já tinha praticado, porque era muito flexível e porque já fazia a segunda série. Ele tratou-me muito mal. Chamava-me bad men (risos) “You do bad men….”
O que foi mudando em Pattabhi Jois ao longo dos anos?
Ele continuou a ser a mesma pessoa até morrer.Quando ensinava acredito que estava tocado por algum tipo de graça, era uma totalidade, uma presença. Fora da sala podias ter uma relação muito afectiva com ele, mas na sala ele era como um juíz que te via por dentro e que julgava a tua acção: de onde a fazias, se havia competividade, se havia uma atitude adequada na prática…
Se Pattabhi Jois combatia essa competitividade, porque assistimos a tanta entre os praticantes de Ashtanga Yoga?
O que ele fazia era estimular a energia, no sentido de intenção de progresso. Ele estimulava e via quando uma pessoa se esforçava por progredir. Isso era positivo. Mas quando havia ego envolto, orgulho, show-off, ele acabava com isso. O ego para ser superado tem de ser visto, creio que Guruji é um mestre espiritual, no sentido em que nos fazia desenvolver a energia e quando isso acontecia era fácil ver o ego aparecer. Quando tens muita energia, quando tens êxito, a sensação “I’m the best” vem e comparas. O problema é que nós ocidentais baseamos o progresso na competitividade e eu creio que isso é um erro. Os indianos não tinham isto. Guruji acabava com isto. Pelo menos fez isso comigo. Naquela época eu vi como ele tornava as pessoas humildes. Tenho recordações incríveis de pessoas que tinham a 4ª série quase completa e que lhe pediam os certificados e ele não dava, no entanto dava a pessoas que haviam terminado com mais dificuldade a 3ª série e a sua prática não era tão bonita e tão boa desde fora.
Na tua opinião quais são as vantagens do Ashtanga Vinyasa Yoga?
Não creio que seja bom compará-lo com nada, com nenhum outro sistema. Creio que é positivo se te faz bem a ti, se é ensinado por um professor adequado e se satisfaz as tuas necessidades. Se uma pessoa nunca fez nada de exercício, se tem problemas físicos e se já não é nova, eu recomendaria que começasse com uma prática mais moderada. Por outro lado, o ashtanga também pode ser adaptado ao indivíduo. Eu vi o Guruji adaptar a prática. Ocorre que a estrutura da prática tem uma certa exigência. Até a saudação ao sol já tem uma certa exigência para muita gente que não consegue saltar ou arquear as costas. Agora quando é praticado adequadamente, existe um sentido de desintoxicação e purificação que se produz. O efeito sobre a saúde é muito claro. Acho que o ashtanga é muito adequado para gente jovem, que está em processo expansivo.
Tu que valorizas tanto a meditação acreditas que a prática de ashtanga deveria ser combinada com a prática de meditação?
Se formos ortodoxos Guruji dizia “Practice of ásana and pranayama is very dificult. Meditation is very easy”. Com isto ele quer dizer que na prática de ásana é preciso pôr esforço e dedicação, assim como no pranayma. O resultado, fruto da purificação gerada pelo ásana e pelo pranayama, executados com atenção, provoca um estado de limpeza espiritual, cujo resultado, por sua vez, é um estado contemplativo. Por isso Guruji diz que a meditação é fácil, por ser o resultado da prática de ásana.
Eu, pessoalmente, penso que aplicar elementos de meditação na prática a torna mais completa. O efeito de pararmos e sentirmos é muito terapêutico. Dedicar-lhe meia hora, indepentemente da técnica meditativa que utilizes (podes fazer mantra, técnicas respiratórias, budistas, cristãs,…), depende daquilo que te atrai espiritualmente, mas o facto de parar, reflectir dá muito sentido à vida e à prática e ajuda-nos também a desenvolver uma prática muito mais consciente. Os ásanas ajudam a meditação e a meditação ajuda a executar os ásanas com mais consciência.
Achas que agora que o Guruji não está mais entre nós a prática de Asthanga Vinyasa Yoga mudará?
Sharath está aí e penso que haverá sempre uma escola ortodoxa que continuará a ensinar como Guruji ensinava, o que é bom. Haverá também pesssoas que adaptarão e mudarão a prática. Na minha opinião, se alguma coisa mudar, o que eu quero é que a pessoa que muda saiba o porquê de estar a mudar, qual o propósito. Se se fazem modificações, porque são feitas? Isto é muito sério. Perceber porque se fazem as coisas, o que se procura, qual o propósito.
Aquilo que tu pessoalmente procuras hoje é o mesmo que procuravas aos 25 anos, quando começaste a praticar ashtanga?
Em termos absolutos sim. Porque aquilo que buscava era um estado de plenitude e de paz. Esta aspiração interna continua a mover-me. Mas acontece que os instrumentos mudam, como era muito jovem naquela altura foquei-me nos ásanas, que eram aquilo que me atraía. Estava seduzido pela execução do ásana, por desenvolver mais flexibilidade e avançar na série. Com o tempo começas a procurar outras coisas com a prática do yoga, o aspecto espiritual e filosófico. Acima de tudo, eu vejo a prática de ásanas como a base que mantém a mente estável, o corpo são. O mesmo em relação ao pranayama. Mas logo há que dar um sentido a tudo isto. Isso vem com a maturidade e depois aprende-se a aplicá-lo na vida. O importante é que toda esta filosofia não seja apenas um conjunto de conceitos, mas que saibas como aplicá-la à tua vida. Como aplicas ahimsa na tua vida, como aplicas Mytra, Karuna, amizade, compaixão, a equanimidade, a alegria… Como aplicar tudo isto na vida? Como reduzir também os kleshas, as impurezas internas, como o egoísmo, a aversão, o medo o desejo, tudo o que te frustra na vida. Assim, já tens uma dimensão mais profunda da prática de yoga, mais completa, mais integradora.
É a segunda vez que vens à Quinta das Águias, o que achas dos praticantes que tens ensinado aqui?
É um prazer muito grande estar aqui. Sinto que nos une o mesmo espírito. Tenho de agradecer as estes grupos o entusiasmo e a energia de que dispõem. Estamos todos no mesmo barco e hoje remamos mais um pouco todos juntos mais, o que é bonito.